Felipe Souza


SOLDADOS EGÍPCIOS NO PELOPONESO: O EXÉRCITO DO PAXÁ MOHAMED ALI NA REPRESSÃO OTOMANA À INDEPENDÊNCIA GREGA (1825-1827)
Felipe Alexandre Silva de Souza

Com o intuito de retratar alguns aspectos políticos e militares da longa decadência do Império Otomano, pretendemos, por intermédio de uma narrativa baseada em revisão bibliográfica, fazer uma reconstituição do esforço empreendido pelo sultão Mahmud II para que Mohamed Ali, paxá do Egito — então uma província otomana —,  mobilizasse seu exército para auxiliar Constantinopla a sufocar a luta da nação grega por independência (1821-1832).
Mehmet II, sultão otomano que veio a ser conhecido como “o Conquistador”, tomou Constantinopla em 1453 e destronou o imperador cristão Constantino XI Paleólogo. Em 1458 Atenas foi capturada e por volta de 1460 todo o Peloponeso já havia se tornado território otomano. Por cerca de três séculos não houve, entre a população helênica, contestações significativas à sua condição de súditos do sultanato. A mudança veio a partir de fins do século XVIII, por parte principalmente de prósperos grupos de comerciantes, armadores e intelectuais gregos que, em contato com o ideário iluminista europeu, consideravam cada vez mais estagnado e insuportável seu ambiente doméstico, povoado por oficiais otomanos, prelados ortodoxos e tacanhos governantes locais (STAVRIANOS, 1958; CLOGG, 1992). Também não lhes escapava a situação degradante da totalidade do Império Otomano, que paulatinamente deixava de funcionar como um estado unitário e enfrentava dificuldades crescentes em manter o controle sobre suas províncias.
Um dos pontos iniciais do movimento pela independência grega foi a fundação, em Odessa (Ucrânia), da Philike Hetairia em 1814, uma organização inspirada pela Revolução Francesa e liderada por mercadores gregos. Foram membros da Hetairia que proclamaram a independência da nação helênica em 1821, e deram início a uma série de campanhas militares contra postos de comando otomanos. O pouco treinamento bélico e a falta de unidade prática entre os gregos, somados ao território montanhoso da região, impedia uma maior coordenação entre os ataques. Segundo Stavrianos (1958), a geografia também se mostrou desvantajosa para os otomanos, que não conseguiam manter por muito tempo os territórios que recuperavam das forças gregas.
Durante o primeiro ano da guerra, os gregos, não poucas vezes cometendo massacres em larga escala contra a população turca não-combatente, reconquistaram o Peloponeso e alguns centros navais localizados nas ilhas do Mar Egeu. Em meados de 1822, os revolucionários já controlavam Missolonghi, Atenas e Tebas. Todavia, mais ao norte, a situação era favorável a Constantinopla: as insurreições em Tessália, Macedônia e Monte Atos foram derrotadas. Ao longo dos três anos seguintes não houve grandes avanços por nenhuma das partes envolvidas. O sultão Mahmut II dispunha de um extenso império e recursos consideráveis, mas não conseguia aproveitá-los de forma efetiva. Os gregos se armadilhavam por seus recursos escassos e disputas internas, e não conseguiam tirar vantagens significativas da fraqueza turca (STAVRIANOS, 1958).
A reviravolta viria a partir de 1825, quando o paxá Mohamed Ali, governador rebelde do Egito, entrou na guerra.
O Egito, arabizado e islamizado desde o século VII, foi incorporado ao Império Otomano em 1517, recebendo o status de província semiautônoma. Em 1798, foi invadido por Napoleão Bonaparte. Embora de curta duração, a ocupação francesa instaurou o caos na província otomana. No Cairo, roubos e estupros eram constantes, enquanto na zona rural e nas vilas, soldados atacavam camponeses em busca de dinheiro e alimentos. A situação piorou quando tribos beduínas se juntavam às diversas facções militares em disputa (FAHMY, 2008). Mohamed Ali, oficial do exército otomano que havia sido enviado ao Egito em 1801 para combater os europeus, viu na crise uma oportunidade de ascensão política. Apoiado pelas tropas albanesas que liderava, e costurando alianças entre as camadas urbanas, conseguiu executar um golpe de estado em 1804 e se declarar wali (governador) de uma das províncias mais ricas do Império Otomano. Ali, que viria a ser conhecido, assim como seus sucessores, pelo título de Paxá, havia percebido a decadência do Império, mas tinha consciência de que o sultão poderia depô-lo a qualquer momento, uma vez que o alcance de seu poder estava circunscrito apenas ao Cairo e imediações, e o exército albanês, a base de sua força, não era confiável. Foi essa situação que levou Ali a trabalhar, até o fim do seu governo em 1848, no sentido de centralizar e expandir o aparato administrativo egípcio. Seu governo foi marcado por uma relação sempre tensa com o sultanato — ora de proximidade, ora de afastamento, mas nunca de submissão. Nessa busca por poder e por uma relativa autonomia em relação a Constantinopla, um de seus maiores feitos foi o estabelecimento de um exército formidável (FAHMY, 2008).
Bem sucedido ao criar, a partir do armamento e treinamento de camponeses, um corpo de tropas obediente, eficiente e disciplinado, Ali impôs de fato seu controle por toda a província egípcia. Teve êxito ao enviar excursões para aumentar a influência sobre o território do Sudão, consolidando-o como uma colônia. Também montou uma força de ocupação permanente na Arábia e estendeu sua influência até o Iêmen, assegurando assim o controle do Mar Vermelho. Diante do quadro que se desenhava, o sultanato se via cada vez mais ameaçado pelo Paxá: Ali havia construído uma alternativa à decadente Constantinopla. Embora os recursos econômicos do Império Otomano controlados pelo Cairo fossem pequenos em comparação ao total, essa pequena parte era administrada com cada vez mais eficiência, em contraste cada vez maior com o sultanato, que, muito a contragosto, se viu obrigado a pedir auxílio egípcio para enfrentar o movimento grego de independência.
É necessário pontuar que, mais do que uma questão interna do Império Otomano, a Guerra de Independência Grega abalou significativamente a aliança monárquica europeia firmada no Congresso de Viena em 1815. Tendo presenciado revoluções e guerras ininterruptas desde fins do século XVIII, as classes dominantes europeias viram na derrota da França napoleônica o momento para estabelecer e preservar a paz. O mapa da Europa foi então redesenhado com vistas a garantir o equilíbrio das chamadas Grandes Potências: Grã-Bretanha, França, Rússia, Áustria e Prússia. Esse sistema de cooperação, conhecido como o Concerto da Europa, tinha como essência o objetivo de equilibrar as forças entre as potências e estabilizar a Europa sob a hegemonia britânica. Todavia, fora da Europa, na lenta desintegração do Império Otomano — a chamada “Questão Oriental” —, residia uma constante fonte de atrito para o Concerto Europeu. Eram crescentes as ambições antagônicas dos Impérios Britânico e Russo no Mediterrâneo Oriental, no atual Oriente Médio e na área entre a fronteira leste da Rússia e a fronteira oeste do império Britânico na Índia (HOBSBAWM, 2007).
E a insurreição grega foi a primeira grande crise da Questão Oriental. A Rússia via potenciais benefícios no movimento de um povo ortodoxo no qual ela poderia intervir — por tratado, os russos tinham o direito de intervir na Turquia em defesa de cristãos ortodoxos. Temendo uma intervenção unilateral russa, Londres reverteu sua hostilidade inicial para uma intervenção informal a favor dos helenos, aproveitando para estreitar laços comerciais com mercadores locais e dificultar a influência russa (HOBSBAWM, 2007).
Recusando-se a ceder às pressões europeias e conceder independência à Grécia, Mahmud II, buscando tirar proveito do novo exército egípcio e ao mesmo tempo enfraquecer esse vice-reino nucleado no Cairo, ordenou a Ali que enviassem tropas para auxiliar a subjugar os gregos. Mesmo ciente da situação desfavorável, Ali — buscando melhorar as relações com Constantinopla com o intuito de ter mais facilidade para empreender suas reformas modernizadores locais, concordou em mandar 17 mil soldados à Grécia, com a exigência de que seu filho, Ibrahim, se tornasse governador do Peloponeso.
A presença egípcia logo fez a balança pender para Constantinopla, uma vez que os mal treinados e mal equipados rebeldes gregos não eram páreo para os excelentes guerreiros de Mohamed Ali. Ao longo de dois anos, o Peloponeso foi reconquistado e, em junho de 1827, Atenas foi ocupada pelas forças egípcias. Em que pese o sucesso, os militares egípcios receberam com grande ansiedade a informação de que uma frota combinada de navios franceses e ingleses havia chegado ao local e estava próxima da frota turca, na Baía de Navarino, na Grécia. Enquanto o sultão interpretou o movimento como mera tentativa de intimidação, o Paxá sabia que partir para um embate com as forças europeias seria ter seu exército destroçado sem a mínima chance de vitória. Dada a situação em tela, o Cairo mandou representantes à Constantinopla para tentar convencer o sultão a aceitar negociar a independência grega, com mediação austríaca. Irredutível, Mahmud II ordenou que prosseguissem a repressão à resistência helênica. No dia 20 de outubro de 1827, em menos de 3 horas, as forças armadas europeias conseguiram afundar ou queimar a maior parte dos navios otomanos e egípcios. Como nem esse golpe demoveu o sultão de manter a Grécia, o Paxá tomou a decisão de se render separadamente (FAHMY, 2008).
Quatro anos depois, os gregos finalmente conseguiram sua independência, com auxílio europeu (principalmente britânico). O sultão não apenas não teve forças para contestar a separação helênica, como também não teve clima político para punir Mohamed Ali por ter contrariado suas ordens e se rendido à revelia de Constantinopla. Ao contrário: depois de sua participação na questão grega, o Paxá, empoderado por ter se mostrado militarmente mais competente do que o centro do Império Otomano (mesmo que tenha se rendido), conseguiu dar continuidade a um processo de modernização econômica e militar que teria continuidade, embora de forma mais branda, com seu filho Ibrahim. O sultanato de Constantinopla, por outro lado, continuou em uma curva de decadência até conhecer sua derrocada total em 1918, no final da Grande Guerra.

Referências
Felipe Alexandre Silva de Souza é doutorando em História pela UFF e bolsista do CNPq. Email: felipedesouza1988@gmail.com

FAHMY, K. The era of Muhammad ‘Ali Pasha, 1805-1848. In: DALY, Martin W. (org.). The Cambridge history of Egypt, volume 2: from 1517 to the end of the Twentieth Century. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.
HOBSBAWM. E. Era do capital. São Paulo: Paz e Terra, 2007.
STAVRIANOS, L. The Balkans since 1453. New York: Palgrave, 1958.

6 comentários:

  1. Ótimo texto Felipe Souza.

    Na sua pesquisa, você conseguiu identificar o motivo do Paxá escolher a Áustria como intermediadora?

    Você conseguiu identificar negociações do Egito de Ali com potências rivais aos Otomanos? Como se ele buscasse um garantidor de uma possível independência, ou até mesmo de uma expansão para dentro do império?

    Daniel Nunes Ferreira Junior

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    1. Boa noite, Daniel, obrigado pela pergunta. Como cada resposta deve conter apenas 4.096 caracteres, dividirei minha resposta em dois posts.

      As relações de Muhammad Ali com as potências rivais dos otomanos foi muito complexa, em parte devido à situação geral do próprio Império Otomano no começo do século XIX (e antes). O sultanato se encontrava em visível decadência, e todas as principais potências europeias -- em especial, no começo do XIX, a França -- buscavam tirar vantagens econômicas e estratégicas da situação. Ao mesmo tempo, essas potências competiam entre si, e cada uma procurava evitar que suas rivais adquirisse muita força dentro dos territórios otomanos. Por isso, buscavam um equilíbrio aparentemente contraditório: um Império Otomano fraco a ponto de se curvar aos principais interesses europeus, mas não tão fraco a ponto de se permitir ser totalmente dominado por uma única potência europeia que poderia impedir que as outras alcançassem seus objetivos na região. Esse equilíbrio também pretendia impedir a total destruição e fragmentação do Império do Sultão, situação que muito provavelmente colocaria os mais poderosos países europeus em conflito aberto entre si – algo que teria um custo maior do que os governos da época estavam dispostos a bancar.
      Muhammad Ali Paxá, durante todo seu governo (1804-1848), tentou usar essa intrincada e volúvel situação de modo favorável a si mesmo e ao seu projeto de Egito. Devemos ter em mente, em primeiro lugar, que Ali Paxá pretendia modernizar o Egito. A ideia de “modernização” era claramente vinculada ao que se considerava avançado na Europa Ocidental, e nos termos de hoje poderíamos dizer que o Paxá tinha a intenção de “desenvolver” seus domínios segundo os pontos de vista do capitalismo e do Ocidente – e isso por si só já o colocava em proximidade com as principais potências europeias. Além disso, Ali era, pessoalmente, um francófilo assumido, e sempre procurava estar a par do que ocorria nos círculos diplomáticos de Paris. Contou com ideias, financiamento e técnicas francesas para formar seu exército. Muito do parque industrial que tentou criar no Cairo, bem como seus sistemas de irrigação, foram possíveis por intermédio de capitais e maquinário franceses.

      Do ponto de vista político-diplomático, a proximidade com a França também era grande. Via de regra, quando se sentia coibido pelo governo central de Constantinopla, Ali lançava mão de artimanhas e negociatas para convencer os governantes franceses a agirem em seu favor. De sua parte, os governos franceses concordavam em auxiliar o Paxá, posto que isso lhes conferia vantagens estratégicas e econômicas (empréstimos, etc), mas sempre tomavam cuidado para que o Paxá não adquirisse muita força, o que poderia contribuir, em último caso, para a ruptura do Império e uma maior facilidade dos rivais dos franceses adentrarem a região. Era possível, na época, que Paxá conseguisse tal força, já que, além do projeto de modernização, empreendia também um processo de expansão. Quando ele assumiu o governo, entendia-se por província do “Egito” apenas o Cairo, Alexandria e os entornos do Nilo (principalmente a região do Delta). Paxá passou a conquistar os territórios ao entorno e com o tempo conseguiu colocar sob seu controle áreas que equivalem, grosso modo, ao Egito atual (lembrando que essas regiões estavam nominalmente sob domínio otomano, mas na prática eram tidas como “terras de ninguém”, já que não havia administradores do governo central para controlar essas áreas). Além disso, o Paxá conseguiu avançar até regiões da Síria (rica em matérias primas) e conquistou, ao sul, partes consideráveis do Sudão (que não fazia parte do Império Otomano). Por isso franceses e demais europeus eram muito cautelosos com a ajuda que dispensavam ao governante do Egito: não queriam que ele se tornasse um problema impossível de ser controlado.

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    2. De qualquer forma, Muhammad Ali nunca buscou de fato uma secessão em relação ao Império Otomano com vistas a transformar o Egito em um estado nacional tal como os que despontavam a partir dos séculos XVII-XVIII. O que ele queria era que o Egito fosse uma província próspera, moderna, com o máximo de autonomia possível – sem que o Cairo rompesse totalmente com Constantinopla.
      Embora sua proximidade maior fosse com Paris, vez ou outra Ali Paxá buscou negociar com governos e grupos capitalistas de outras nações europeias, como por exemplo a França. E também houve ocasiões em que ele entrou em contrariedade com essas mesmas nações. O caso mencionado da guerra de independência grega é emblemático nesse sentido. Por mais que europeus fizessem negócios lucrativos com os egípcios, os soldados de Ali reprimindo os rebeldes gregos se tratava, do ponto de vista europeu, de infiéis muçulmanos massacrando cristãos (ainda que fossem cristãos ortodoxos, vertente considerada exótica e talvez atrasada para os europeus ocidentais). De modo geral, a opinião pública europeia se indignava com o fato de que o berço da civilização ocidental sofria nas mãos do Islã (o temível Império Otomano, do qual o Egito era província). Um dos boatos mais difundidos na época era de que Ali Paxá iria repovoar o Peloponeso com felaíns (camponeses) egípcios depois que seus soldados massacrassem toda a população cristã helênica. Nessa ocasião, o Paxá foi sensato ao reconhecer o óbvio: suas forças jamais seriam páreo para enfrentar simultaneamente frotas francesas, britânicas e russas. Depois de sua derrota na Grécia, se recolheu e utilizou as perdas como lição para fazer reformas na administração do exército e buscar novas tecnologias, tanto para a área militar quanto para o setor dito industrial.
      Quanto ao fato de a Áustria ter sido mediadora da questão Grécia/Império Otomano/potências europeias, o material por mim consultado não traz detalhes a esse respeito. Mas levando alguns fatos em consideração, podemos levantar a hipótese de que os austríacos seriam os mais imparciais entre os “grandes” europeus, e consequentemente os mais adequados a fazer a mediação do conflito. Todas as outras potências tinham muito mais interesses na região. O Império Britânico, por exemplo, estava em vias de se firmar como a principal presença no Mar Mediterrâneo – que logo viria a ser a linha vital de comunicações entre Londres e as colônias asiáticas (com destaque para o subcontinente indiano). O Império Russo, por sua vez, tinha interesse no Mediterrâneo porque buscava, estrategicamente, portos de águas quentes (lembremos que as águas das regiões próximas a São Petersburgo eram inúteis durante o inverno, pois congelavam). Além disso, podemos dizer que os tsares se viam como defensores da Cristandade Ortodoxa fora da Rússia, e os ortodoxos gregos estavam sendo ameaçados. Vale a pena mencionar que o tsarismo se considerava em parte herdeiro do Império Romano profundamente helenizado sediado em Constantinopla – a chama Nova Roma. Ivan III, no século XV, se autodenominou tsar após se casar com Sofia, sobrinha do último imperador bizantino Constantino XI Paleólogo – e Moscou era considerada a Terceira Roma, destinada a perdurar eternamente. Os franceses, por sua vez, embora sem tanta projeção internacional quanto britânicos e russos, tinham os interesses comerciais e estratégicos que já mencionamos no Império Otomano. Em comparação à Grã-Bretanha, Rússia e França, Viena, com relativamente poucos interesses na região, poderia ter parecido o único país capaz de realmente ter interesse em uma paz equilibrada entre os envolvidos.

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  2. Bom dia,


    Felipe Souza, poderia comentar mais a fundo como era a situação política da Grécia no período? Se havia alguma autonomia em relação à Constantinopla, seja no trato econômico e político.


    Gostaria de saber se em suas pesquisas você conseguiu localizar alguma proximidade estratégica da Grécia, sobretudo do Peloponeso, com o Reino das Duas Sicílias ou mesmo com a Áustria.


    Wellington Lucas dos Santos

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    1. Boa tarde, Wellington, obrigado pela pergunta.
      A respeito da situação grega dentro do Império Otomano, podemos dizer que existiam dois mundos gregos díspares no Império Otomano. Em Constantinopla se baseavam grupos minoritários — as ricas famílias mercantes conhecidas como Fanariotas e o alto prelado da Igreja Ortodoxa — que comandavam a maior parte das atividades comerciais da península balcânica e ocupava alguns dos mais altos postos da administração e da diplomacia otomana. No início do século XIX, esses segmentos gregos eram os mais poderosos entre os povos subjugados por Constantinopla.

      Em contraste, havia o mundo camponês da grande maioria que vivia nas províncias gregas do Império, assolada pela pobreza e pelo analfabetismo. Os conquistadores dividiram as terras gregas em dez regiões administrativas (sanjaks). As planícies foram divididas em territórios menores (fiefs, ziamets e liels) e sua posse foi distribuída entre os guerreiros turcos considerados mais valorosos pelos sultões. O que se resultou na prática foi um sistema administrativo notavelmente caótico, o que acabou por permitir que a maioria dos camponeses gregos levasse uma vida cotidiana miserável, mas com pouca influência das autoridades otomanas, contrariando a tendência secular do sultanato à centralização. Stavrianos (1958) pontua que, com exceção de algumas áreas na Trácia e na Macedônia, onde um grande número de turcos se estabeleceu, a população grega normalmente era livre para eleger seus próprios governantes locais. A igreja ortodoxa tinha permissão de funcionar livremente e não pagava impostos pesados. e eles desfrutavam de um grande grau de autonomia em um regime administrativo descentralizado. Algumas cidades gregas, como Yanina, detinham privilégios administrativos especiais, e certas regiões montanhosas nunca chegaram a ser completamente submetidas, e eram deixadas em paz contanto que pagassem alguns tributos gerais.

      Foi justamente a deterioração da estrutura imperial otomana (ou seja, a decadência do Império Otomano) que levou à maior opressão sobre os camponeses helenos. As derrotas militares, a corrupção e o desfalque geral levaram inevitavelmente a um crescimento do peso dos impostos nas terras gregas e a métodos mais violentos para arrecadá-los. Enquanto isso, o mundo camponês foi gradualmente transformado cultural e comercialmente pela combinação de forças domésticas e estrangeiras. Uma das consequências das guerras franco-britânicas do século XVIII foi o desmantelamento das operações dos mercadores ocidentais estabelecidos em Salônica, Patras e outros portos gregos. Os nativos aproveitaram essa oportunidade para ingressar no negócio de exportações e importações com os países da Europa Central.

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    2. A economia grega também foi estimulada pelos tratados Russo-turcos de Kuchuk Kainarkji (1774) e Jassy (1792), que estipulavam que o Mar Negro e os Estreitos deveriam ser abertos aos comércios russo e austríaco, e que os súditos gregos da Porta teriam a permissão para hastear a bandeira russa em seus navios. Isso abriu novos campos para o comércio grego, que encontrou um mercado em expansão nas novas províncias do sul da Rússia, para produtos gregos (frutas, vinho, sabão, azeite de oliva, etc). Os gregos também lucraram fazendo serviços de frete para o comércio russo de trigo. Quando a guerra entre franceses e britânicos os levou a destruir suas respectivas marinhas mercantes no mediterrâneo, os fretistas gregos foram deveras bem sucedidos em aproveitar esse vácuo e aumentaram exponencialmente sua frota naval. Uma das repercussões do renascimento comercial grego foi a criação de uma nova atmosfera intelectual que facilitou o surgimento das forças políticas que levariam ao levante de 1821. As novas relações comerciais levaram os mercadores e intelectuais gregos a entrar em contato com outros povos e culturas. Essas novas perspectivas tornaram mais difícil conviver em um mundo habitado de oficiais otomanos, prelados ortodoxos e governantes locais. Paulatinamente, o jugo otomano deixou de ser visto como uma força inarredável. Não à toa, os mercadores seriam uma força fundamental na luta contra os otomanos.

      Quanto à proximidade da Grécia com a Áustria ou com o Reino das Duas Sicílias, não captei, no material consultado, nenhuma relação especial com esses dois países. Contudo, os líderes do movimento de independência grego, em grande parte por trabalharem no setor do comércio naval, adquiriram extenso conhecimento e viagens ao longo da Europa Ocidental. Creio que suas maiores influências teriam sido a França (por conta do chamado Iluminismo que teria inspirado parte dos ideais de indpendência) e a Rússia, por conta da proximidade criada pelo fato de Grécia e Rússia serem países da Cristandade Ortodoxa.

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