PRESTE JOÃO DAS ÍNDIAS E SUA MUTABILIDADE GEOGRÁFICA
Eduardo Leite Lisboa
Muitas foram as mutações iniciadas na
Cristandade de fins do século XI. Na vida econômica e social temos renovações
das práticas agrícolas, crescimento populacional, os grandes arroteamentos e
modificação do regime senhorial; a intensificação do comércio, da circulação
monetária, o apogeu das cidades e uma reorganização da produção artesanal
traduzida nas corporações de ofícios. No aspecto político vislumbramos a
constituição de uma nova dinastia em França, encontramos uma Itália normanda,
pontifícia e comunal, uma Península Ibérica cristã a (re)constituir-se, o translatio imperii para os Germanos e
uma Inglaterra muito peculiar mas indissociável da Europa continental. Sem
falar, é claro, na atividade intelectual em que basta mencionar a palavra
“universidade” para que os ares de uma Idade Média nada obscura possam
continuar a soprar. No entanto, é interessante pincelar mais detidamente dentro
desta moldura ao menos três outros temas concernentes a Igreja, as Cruzadas e
ao maior contato com o oriente, para então abordar o imperador indiano Preste
João.
Uma resposta a “feudalização da Igreja”.
O comportamento senhorial de muitos
bispos e abades, bem como a prática da simonia e do nicolaísmo, acarretaram
iniciativas institucionais para um regresso ao fim espiritual do clero,
conforme denunciam a Paz e Trégua de Deus já em meados do ano mil. Isso
resvalou na questão da investidura, onde, na altura, dignitários da Igreja eram
escolhidos e consagrados por soberanos laicos – direito reconhecido pela Santa
Sé desde Clóvis, é verdade – mas que com a corrupção clerical do momento
fazia-se necessário abolir para consolidar a suprema dignidade eclesiástica. O
auge destas discussões culminou na Dictatus
Papae (1075) de Gregório VII. Interessa-nos neste documento não
propriamente a resolução dos desvios morais de Roma, mas sim a afirmação da
autoridade espiritual sobre a temporal, expressa em ideias como: “o papa é o
único homem a quem todos os príncipes beijam o pé” (ESPINOSA, 1981, p.
289-290). Em suma, uma complexa querela entre o Sacro Império Romano-Germânico
e o papado instituiu-se, perdurando quase cento e cinquenta anos, até a Concordata de Worms em 1122.
“Peregrinação em armas”, como era entendida
as Cruzadas em seu desenrolar, deveu-se a fatores de diversas ordens que neste
esboço não convém enumerar. Cabe lembrar que no ano de 1095, Aleixo I,
imperador bizantino, enviou uma embaixada ao pontífice Urbano II requisitando
auxílio contra os turcos que haviam se apossado de províncias do Império Romano
do Oriente, dentre elas Jerusalém, e rumavam em direção a Constantinopla. O
convencimento papal foi imediato. Porém, a guerra santa não mirava somente
inimigos externos a Cristandade com vistas na recuperação de terras cristãs,
mas também internamente, contra as heresias e na canalização da destrutiva
cavalaria europeia para um inimigo comum (sobretudo na Terceira, onde partidos
franceses, alemães e ingleses se digladiavam). Esta epopeia (1096-1270), sabe-se,
foi um sucessivo fracasso no que diz respeito a reconquista/manutenção dos
antigos domínios ortodoxos orientais (com exceção da Primeira); e, para a
preocupação ocidental, somou-se em meados do século XIII um novo inimigo que
crescia e se avizinhava: os mongóis (tártaros) a conquistar regiões
equivalentes a Polônia, Hungria, Romênia e sul da Rússia.
No entroncamento dessas informações,
surge o império de Preste João (1165) por meio de uma carta endereçada ao
imperador bizantino, imperador germânico e ao papa (variando conforme as
versões) (RAMOS, 1998). João apresenta-se ao mundo enquanto rei-sacerdote (daí
o título “Preste”, de padre, presbítero) das “três Índias” (algo entre a Torre
de Babel e os confins do Oriente), como vencedor do sultão muçulmano persa e
interessado na marcha para a Terra Santa. Ou seja, um possível aliado contra o
Islã. Por hora apresentarei este mito a partir de duas abordagens
interpenetrantes.
A primeira diz respeito ao empreendimento
de Hilário Franco Júnior no ensaio A construção
de uma utopia: o império de Preste João (1996, p. 89-108). O texto centra-se nas atitudes mentais
relativas à política devido a articulação do projeto imperial com as
manifestações imaginárias do período. Na esteira do embate da reforma gregoriana,
a figura de Preste João pautava novamente a questão jamais resolvida: o
imperador era servidor direto de Deus, portanto protetor da Igreja, ou, pelo
contrário, seu poder emanava de São Pedro e assim deveria curvar-se diante
Roma? Pois bem, o monarca extremo-oriental era rex et sacerdos. O partido germânico, em guerra não somente
ideológicas com o papado (vide a disputa pelas comunas italianas do norte
peninsular), interessou-se no Sacrum
que compõe o Romanum Imperium e, aos
moldes de Preste João, lançou-se em tal direção. Além das projeções e
comparações entre o mitológico imperador e o ocidental, dois movimentos foram
importantes para tentar forjar um poder emanado diretamente de Deus: 1. João estava cercado de toda a simbologia
oriunda dos Três Reis Magos, portanto, Oto de Freising, tio de Frederico
Barba-Ruiva e maior ideólogo de toda esta situação, transferiu as relíquias de
Gaspar, Melchior e Baltazar da comuna de Milão para Colônia, na Alemanha; 2.
Freising, na crônica que fez de Frederico (a seu pedido), remontou sua linhagem
até os merovíngios e canonizou Carlos Magno, sacralizando, portanto, o próprio
imperador.
Uma crítica clerical também é trazida
pelo medievalista brasileiro. Se a Dictatus
Papae queria afastar o verniz feudal da Igreja, parte do laicado e mesmo do
clero (sobretudo acerca do celibato) denunciavam sua monarquização ocasionada
em funçao das novas hierarquias e dogmas. Sendo assim, o modelo de rex et sacerdos oferecia uma alternativa
viável ao sistema eclesiástico romano. Não obstante, importante sublinhar que
Preste João era nestoriano – uma heresia condenada no século V mas que penetrou
na Pérsia desde a Antiguidade Tardia –, elemento determinante quando o papa
Alexandre III responde à sua carta, exortando-o a converter-se ao verdadeiro
cristianismo. Enfim, mesmo o partido pontifical se posicionando contrário a
ideia de uma República Cristã não encabeçada pela Igreja, também enxergava no
formato oriental um alinhamento com seus propósitos temporais e espirituais.
A outra abordagem circunscreve-se a
mentalidade. Com a ascensão do Império Mongol e sua conquista da China em 1214,
as portas da Ásia foram abertas aos ocidentais em razão da tolerância religiosa
do Grande Khan. Devido a isso, muitos para lá foram e deixaram-nos relatos, porém,
através deles percebemos o carregar de uma bagagem muito mais pesada que dos
utensílios de jornada, e Maria Adelina Amorim sintetizou-a de maneira precisa
em uma capital coletânea de estudos bibliográficos sobre o assunto:
“Conforme se alargavam os horizontes do
espaço geográfico, tornando as terras longínquas mais conhecidas, também
aumentava o fascínio pelas coisas maravilhosas que albergavam. Tudo o que de
insólito, invulgar, ou estranho contivesse a natureza, o homem dessas paragens,
mais aguçava a curiosidade e o espanto. Aquele mundo parecia um outro mundo, um
lugar onde tudo era o reverso do cognoscível, o outro lado do espelho, o alter mundus. Um sistema de representações do “diferente” começou a marcar lugar no
referencial dos Ocidentais, num processo que não se pode considerar totalmente
novo, uma vez que essas categorias de significação, quer antropológicas, quer
naturais ou espirituais, já se encontravam muitas vezes no seu universo mítico.
O homem medievo possuía definições e quadros de entendimento apriorísticos, e,
por vezes, o que o deslumbrava era também o corolário de uma rede subtil, mas
reveladora de muitas permanências das antigas culturas da Antiguidade e das
autoridades, sobretudo religiosas, do período medieval. Pouco importava, para
o efeito, se as viagens eram reais ou imaginárias, se o autor era o próprio
protagonista da experiência ou, apenas, um simples coletor de notícias, de
relatos orais, de narrativas, de relatos bíblicos, de fisiólogos, bestiários,
romances de cavalaria, tratados de astronomia, ou qualquer espécie de informes.
[...] O itinerário podia reproduzir os anteriores, com uma ou outra variação, o
escriba ser detentor de pior ou melhor estilo literário, ter, ou não,
percorrido os lugares que bordejavam o Paraíso Terreal, o Reino do Preste João, as moradas das raças monstruosas, os vales do
Demônio, as terras e Gog e Magog. Importante era o efeito produzido, o avolumar
de maravilhas, o crescer em espanto (Grifos meus. AMORIM, 2002, p. 132-133).
Nas palavras de Claude Kappler: “O fato
de, nas terras distantes, as coisas serem totalmente diferentes das nossas é
uma das características mais importantes (e mais procuradas) da viagem”
(KAPPLER, 1994, p. 63). Não é estranho, portanto, que durante a pax mongolica
(1214-1368), encontramos a menção deste mitológico imperador nas principais
fontes literárias de viagens ao oriente, como nos escritos de João de Pian del
Carpine, Guilherme de Rubruc, João de Montecorvino, Odorico de Pordenone, Marco
Polo, Jordan Catala de Sévérac, Jean de Mandeville, Jean de Marignolli, no Libro del Conosçimiento, dentre outros.
O império de Preste João se apresentava
aos espíritos medievais como um território literalmente próximo ao paraíso,
portanto, como um local de fartura, exuberância e natureza. Era uma terra
abundante em pedras preciosas, gêneros alimentícios e diversidade humana (e
monstruosa), com plena paz e justiça, onde não existia adultério ou qualquer
falha moral, era abençoada por rios advindos do próprio Éden, detinha a fonte
da juventude (o próprio Preste João possuía mais de seiscentos anos) e uma
unidade político-religiosa, como já dito. Em síntese, uma sociedade ideal, rico
material e espiritualmente (HELLEINER, 1959, p. 47-57). E a própria geografia
do mito explica-nos o porquê destas qualidades, afinal, percebemos a
perpetuação da tradição do extremo oriente enquanto um alter mundus de sonhos: foi através de um tratado embebido do
manancial mítico-alexandrino escrito por Megástenes (por volta de 300 a.C.) que
todas as fábulas antigas e medievais acerca da Índia foi originada, sendo
referência para grandes autoridades da Idade Média, como Santo Agostinho,
Isidoro de Sevilha e Plínio-o-Velho, encontrando no mito joanino uma nova
roupagem (LE GOFF, 1993, p. 269-270).
É nos mapas, no entanto, que visivelmente
podemos perceber as “Três Índias” que Preste João reina, afinal, seus domínios
já foram localizado na Mesopotâmia, na Índia, no Extremo da Ásia e na Etiópia
(DA COSTA, 1999, p. 53-64). William Hansard em um estudo intitulado The Cartographic Quest for Prester John traz-nos
trazido que demorou quase cento e cinquenta anos (1310) para que o mito fosse
representado na cartografia; e o autor sublinha que talvez isso tenha ocorrido
devido a real popularidade que este relato encontrou após os escritos de Polo e
Mandeville. Segue seu texto analisando diversas aparições em portulanos e
mapas, sublinhando que é no mapa mundi catalão de 1450 que encontramos sua
primeira representação pictográfica. Hansard destaca que Preste João foi
primeiramente localizado na Etiópia e depois, por vezes, rumou para a Ásia – um
caminho diferente daquele feito na literatura. Exemplo e síntese disso pode ser
o mappa mundi genovês de 1457, onde
ele aparece como Presbyter Johannes rex,
na Etiópia, como co-construtor do Muro de Alexandre, na China, e enquanto Indorum rex, na Índia (BRUNNLECHER,
2013, p. 75-78).
“Na mesma altura em que, na Literatura de
Viagem europeia, era problematizada a caracterização asiática (mongólica ou
nestoriana) do Preste João, tomava progressivamente forma no imaginário europeu
uma deslocação do locus do reino, da
Ásia para a África. Esta deslocação era possibilitada pela recorrência de
informações sobre reinos cristãos núbios ou etíopes: informações que eram transmitidas
por viajantes europeus, e por monges e peregrinos cristãos etíopes – cuja
presença na Terra Santa, e mesmo na corte pontifical, era frequentemente
assinalada. Desde o início do século XIV, em que um certo Riccardo de Poitiers,
monge de Cluny, noticia a existência de reis cristãos africanos, um residindo
na Núbia, o outro na Etiópia, até ao fim do mesmo século, quando são
referenciados embaixadore etíopes na corte de Afonso IV de Aragão, e Afonso VI
de Portugal envia presentes, por estes, ao ‘Preste João’, vai-se confirmando
progressivamente a deslocação do reino para a África oriental. A esta
deslocação corresponde um período de indefinição relativamente longo (do século
XIV a finais do século XV) de busca de novas coordenadas para a fixação cosmológica,
geográfica e cartográfica do reino naquele espaços” (RAMOS, 1999, p. 243).
Em suma, desde Jacques Le Goff n’O Imaginário
Medieval, sabemos que muitas vezes – quando não necessariamente – eram as
maravilhas que colocavam os homens medievais em movimento. Por mais difícil que
seja conceituar, as raízes de mirabilia estão
em mirari, verbo latino para olhar,
deslumbrar; uma admiração pelo extraordinário (LE GOFF, 1994, p. 46) – como
vimos com Amorim. Muito mais do que desconhecido, irracional ou inconsciente, o
imaginário é algo que dá sentido a determinado mundo ou fenômeno social; é tudo
aquilo que subjaz a existência, como os medos e os anseios, as percepções de
espaço e tempo, as noções políticas e religiosas, e assim por diante. Sendo
assim, colocar as maravilhas nas bordas do mundo conhecido configura-se como
característica do mundo medievo. A imprecisão geográfica do reino de Preste
João conferia-lhe o estatuto de maravilhoso.
Referências
Eduardo Leite Lisboa, mestrando em
História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Currículo E-mail: eduardolisboa.his@gmail.com.
BRUNNLECHNER, Gerda. The so-called Genoese World Map of 1457: A Stepping
Stone Towards Modern Cartography?. In: Peregrinations: Journal of Medieval Art
& Architecture, vol. 4, 2013, p. 56-80.
CRISTÓVÃO, Fernando (org.). Condicionantes culturais da literatura de viagens: estudos e
bibliografias. Universidade de Lisboa: Edições Cosmos/Centro de Literatura de
Expressão Portuguesa, 2002.
Carta do Preste João das Índias: versões
latinas medievais. Prefácio e notas de Manuel João Ramos, tradução de Leonor
Buescu. Lisboa: Assírio & Alvim, 1998.
DA COSTA, Ricardo. Por uma geografia
mitológica: a lenda medieval do Preste João, sua permanência, transferência e
‘morte’. Dimensões, n. 9, 1999, p. 53-64.
ESPINOSA, Fernanda. Antologia de textos
históricos medievais. Editora Sá da Costa, 1981, p. 289-290.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Eva Barbada:
Ensaios de Mitologia Medieval. São Paulo: EDUSP, 1996, p. 89-108.
HELLEINER, Karl F. Prester John's Letter:
A Mediaeval Utopia. Phoenix, v. 13, n. 2, 1959, p. 47-57.
KAPPLER, Claude. Monstros, demônios e
encantamentos no fim da Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 63.
LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval.
Lisboa: Editorial Estampa, 1994.
LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito
de Idade Média. Lisboa: Editora Estampa, 1993
Na era das fakenews, Prestes João pode ser considerado uma FakeNews da idade medieval? Se sim, pode informar o interesse na criação desse mito.
ResponderExcluirBoa noite, Tarcísio. Preste João foi um imperador mitológico (fabricado, é verdade). Não sei se podemos atribuir a ele este conceito, pois no imaginário medieval não estava na ordem do dia a falsidade ou não de qualquer informação, pois ele era real no espírito de seus contemporâneos (até o século XVI). Porém, me parece que, como esbocei, sua criação pode estar ligado ao interesse imperial pelo poder temporal e espiritual, bem como servindo às Cruzadas.
ExcluirOlá, parabéns pelo texto, achei super interessante a discussão que você propôs. Sabendo que as utopias, como a do próprio Prestes João e segundo Hilário Franco, caracteriza uma sociedade idealizada coletivamente e muitas vezes localizadas apenas no plano imaginário e dos sonhos e não algo a se buscar concretamente (Hilário pontua isto como um dos contrastes e distinções para com a ideologia, mas não vem ao caso). Sendo assim, gostaria de perguntar se você acha que essa incerteza em localizar o suposto império de Prestes era de certo modo "intencional" a fim de fazer com que o ideal utópico permanecesse no imaginário medieval?
ResponderExcluirGuilherme Silva