Arthur D'Elia


GILGAMESH FOI ASSOMBRADO PELA FILOSOFIA DECADENTE DE HEIDEGGER
Arthur D’Elia
 
Gilgamesh, famoso personagem de uma epopeia escrita na antiga mesopotâmia, passou por diversas aventuras ao longo de sua vida. O mesmo viveu intensamente até a morte de seu amigo Enkidu. Posterior a isso, carregou o fardo da finitude de tal modo que o viver se esvaziou de sentido. Os dois momentos descritos podem ser explicados a partir de Epicuro e Heidegger.
Gilgamesh foi rei de Uruk. Sua constituição caracterizava-se por ser dois terços deus e um terço humano. Possuía extrema sabedoria e força. Entretanto, após haver reclamações do povo de Uruk com relação à sua arrogância sem limites, os deuses conversaram com a deusa da criação Aruru, a qual cria Enkidu que possuía virtudes de um deus da guerra para confrontar o rei. O ser criado pela deusa vivia inicialmente na floresta com animais, protegendo-os das armadilhas de um caçador. Este último reclama junto ao pai da criatura sobre o que tem acontecido. Diante disto, recebe um conselho de ir até Gilgamesh em busca de uma rameira para se deitar com o sabotador de armadilhas. Ela o enfraquece quando passam juntos por sete dias e sete noites. Enkidu passa a ter redução de suas virtudes como agilidade, rapidez, força e os animais fugiam dele. Isso ocorre, pois, agora detinha conhecimento de tal forma que pensamentos ocupavam o coração (2011).
Por conseguinte, a rameira o chama para ir até o templo de Ishtar e Anu; que prontamente aceita visando derrotar o rei de Uruk. Na noite em que Gilgamesh casaria, Enkidu surge e ambos brigam. O enviado da deusa Aruru perde, mas reconhece a força de seu oponente e ambos se tornam amigos. O primeiro momento de companheirismo desta nova amizade reside no fato de que após ter um sonho de seu destino decretado por Enlil, pais dos deuses; o rei de Uruk recebe o auxílio de seu amigo que lhe pede para não temer a vida por esta ser finita, e que deve governar para cumprir seu destino. Ser a luz e trevas da humanidade tal como lhe foi concedido por Enlil, sem abusar do poder (2011).
Com relação ao destino, fazia parte deste a colocação do nome sob lápides que estavam localizadas na terra dos vivos e cedros. Para tanto, a ida até o local onde eram abatidos os cedros se fazia necessário. Todavia, uma criatura conhecida como “Humbaba", protegia os cedros, possuía um caráter hediondo aterrorizador. Com relação a tal perigo, Enkidu alerta seu amigo. Diante desta situação, Gilgamesh se posiciona de uma maneira um tanto quanto epicurista ao considerar que não se deve temer a morte e que mesmo que morra, vai morrer de um jeito que seu nome ficaria marcado para sempre na história da humanidade por tamanha coragem ao lutar com Humbaba. O desejo do rei de Uruk era de inscrever seu nome onde nenhum homem jamais conseguiu (2011).
O que pode ser dito como epicurismo nesta consideração, fica claro com a seguinte fala de Epicuro:

“Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade (EPICURO, 1973, p. 2).”

O refletir sobre a morte simplesmente não faz sentido, pois enquanto o humano está vivo, o que se tem é vida e quando a morte chega, ele já não está mais presente. Como bem ressalta o grego, o bem e mal são aspectos da vida, sensações e não da morte. Neste primeiro momento, o rei de Uruk segue esta linha de pensamento.
Quando os dois personagens estão a caminho da floresta (povo e conselheiros de Uruk não acreditavam na vitória dos dois amigos), percebem que um portão que os separa dela precisa ser aberto; este trabalho fica para Enkidu que o executa perfeitamente. No entanto, ao abri-lo, fica fraco, com medo de novas batalhas. Mas Gilgamesh pede-lhe para continuar firme e não temer a morte. Os dois juntos conseguem derrotar Humbaba, que era sentinela da floresta, após um triste episódio em que a criatura derrotada inicialmente havia sido consolada pelo rei de Uruk por não saber quem eram seus pais. Porém, o retorno à Uruk seria impossível caso a ajuda fosse efetuada (2011).
Após o êxito de Gilgamesh, Ishtar que era deusa do amor, sexo, o convida para ser seu marido. Mas este prontamente recusa ao se recordar do modo como ela tratava seus últimos amantes. A deusa não fica satisfeita, chora e pede ao seu pai Anu um touro do céu para destruir o rei de Uruk. Caso não lhe fosse concedido, abriria os portões do inferno trazendo mortos de volta à vida. Anu atende ao pedido, fornece-lhe o touro, este devora trezentos homens, próximo a um rio, quase se alimenta também de Enkidu; mas o potente rei de Uruk age rapidamente e o mata com sua espada (2011).
Na noite seguinte, Enkidu sonha que os deuses (Anu, Ea, Enlil e Shamash) se reuniram num conselho. Em tal reunião, Anu alega a Enlil que devido às mortes de Humbaba e touro do céu, causadas pelos dois amigos, um dos dois deveria morrer. Ainda que o deus-sol Shamash tenha discordado da conduta dos deuses, não foi o suficiente para evitar a maldição que estes colocariam sobre Enkidu. O grande amigo de Gilgamesh vem a falecer, tornando o rei de Uruk um poço de raiva. Em respeito ao companheiro morto, decide protagonizar um luto real à esquerda de seu trono; com príncipes da terra beijando seus pés e o povo de Uruk chorando e cantando hinos fúnebres (2011).
A radical perda de sentido com relação à vida atinge o herói após o fim de seu praticamente irmão. A corrida para pôr o nome na lápide se esvazia de significado. Gilgamesh passa a vaguear pela planície, se perguntando como poderia ficar em paz; principalmente ao se dar conta da finitude de sua vida. O medo da morte passa a dominá-lo, pois até o momento este é o seu irremediável destino. Consequentemente, ao modificar seu planejamento e passa a ir atrás de Utnapishtim, que foi acolhido pelos deuses após o dilúvio, ficando instalado na terra de Dilnum, no jardim do sol. Somente ele dentre todos os homens possui a vida eterna concedida pelos deuses. Desta maneira, Gilgamesh almeja a vida eterna por medo da morte (2011).
A percepção da morte como um destino inexorável atinge o rei de Uruk de tal modo que a sua preocupação não é mais com a vida em si e seu sentido, mas com sua inegável mortalidade. Se antes considerava que só uma vida provida de sentido acarreta numa morte provida de sentido; após o triste fim de seu amigo, passa a ver a vida tendo um propósito apenas se esta for infindável. O peso do viver mediante finitude, ainda que de um modo distinto, está presente na filosofia heideggeriana.
Diante disto, Heidegger considera que a morte é parte do estar no mundo, é a possibilidade mais própria e certa. Ela é algo iminente, fenômeno da vida (Heidegger, 2005). Ao tomar consciência da mortalidade, o homem experimenta a angústia; que por sua vez caracteriza-se por manifestar a condição pela qual as coisas podem ter sentido (AFONSO, 2007). Nesta experiência, ao assumir o nada da angústia, o homem ou “dasein”, é capaz de tornar sua existência autêntica, tornar-se livre. Deve-se entender por “nada” o seguinte: possibilidade de revelação do ente para o dasein humano. Já o ente, dentre o que se pode dizer a seu respeito, corresponde ao modo como o dasein é no mundo (HEIDEGGER, 2005).
Importante notar a partir do exposto que a negatividade é condição para a positividade. A angústia é condição para a liberdade, a consciência da morte é condição para um viver provido de sentido. A decadência de tal filosofia, assim como a de Gilgamesh depois do falecimento de seu amigo, se expressa ao considerar a morte como parte constitutiva do viver. Essa perspectiva, além de constituir um obstáculo à fruição da vida, é completamente desprovida de um senso de realidade. Porque enquanto se está vivo, a morte não existe e, quando esta chega, o homem não está mais presente. Até então, foi demonstrado todo o percurso de Gilgamesh e como seu objetivo se modifica após a morte de Enkidu com os devidos auxílios de Epicuro e Heidegger para entender a modificação de percepção com relação à morte. No entanto, cabe a pergunta: que fim teve o rei de Uruk?
Na busca por Utnapishtim, um homem escorpião ajuda o herói abrindo as portas da montanha, apesar de o fabricante de vinhos Siduri, ter tentado fechá-la. Antes que fosse fechada, Gilgamesh o impede e explicita toda sua trajetória com suas vitórias. Deparando-se com isto, Siduri não entende o motivo de o rei de Uruk carregar consigo uma aparência de derrotado, abatido; e pede-lhe que aproveite a vida, curta momentos de carinho com sua esposa por estas coisas serem partes constitutivas da vida humana (2011). Todavia, o herói não o escutou e seguiu seu caminho em direção a um oceano para encontrar um barqueiro chamado Urshanabi.
Posteriormente, este o leva até seu pretendido destino. Ao encontrar com o único dentre os homens que possui vida eterna, Gilgamesh mesmo sem tornar possível a Utnapishtim como alguém com suas qualidades e modo de viver realiza incessante busca pela imortalidade, fornece-lhe uma resposta. Trata-se de uma flor que cresce sob as águas e possui espinhos que rejuvenesce. O rei de Uruk mediante muito esforço consegue tê-la, mas seu destino sempre foi uma existência finita junto ao povo de Uruk. Ao entrar num poço de água fresca para se banhar, uma serpente que vivia nas profundezas surge e consome a flor, findando a chance de Gilgamesh tornar-se imortal. A partir de então, já estando fraco, o herói falece tragicamente (2011). Desta maneira, a cereja do bolo da decadência é explicitada. Considerando o rumo que Gilgamesh tomou após o fim de Enkidu, pode-se concluir que o rei de Uruk foi assombrado pela decadente e esdrúxula filosofia heideggeriana ao preocupar-se com uma reflexão sobre a morte de tal modo que esta passa a ser parte de seu estar no mundo em sua visão.
Deve-se ressaltar que em Heidegger a vida na sua positividade ganharia tal status ao negar a negatividade que é a finitude para voltar-se ao existir que é constitutivo do dasein, do ser humano. Posto isto, a diferença para o herói da epopéia está no fim niilista e totalmente imerso no aspecto negativo que este teve. Entretanto, o que os iguala enquanto excreções é a tomada da morte como parte constitutiva do viver. A carência de um estudo da realidade em si os faz ignorar aquilo que Epicuro já alertava: a morte não significa nada, pois ao estar vivo, a morte é ausente (EPICURO, 1973). A morte só pode ser considerada como parte do estar no mundo se tal pensamento que assim a concebe igualar o que aparece a um sujeito da realidade em si. Desta maneira que se poderia conceber a morte como sendo integrante do homem e possibilidade mais própria e certa.
Portanto, para além das picuinhas fenomenológicas ou niilistas ao extremo, deve-se destinar atenção para as considerações epicuristas de que enquanto se vive a morte não se faz presente, pois quando esta última chega o ser humano não está mais aí. A possibilidade mais certa e própria é o deleite humano e não o seu fim, isto porque a vida em si não contém o seu findar. Gilgamesh antes da morte de Enkidu estava no caminho certo para um viver autêntico, mas foi assombrado pela filosofia decadente de Heidegger.

Referências
Arthur D´Elia dos Santos
Universidade do Estado do Rio de Janeiro: Graduando de filosofia
Bolsista: CNPq. Orientador: Edgar Marques

AFONSO, Paulo. Nada, Angústia e Morte em Ser e Tempo, de Martin Heidegger. Juíz de Fora: Revista ética e filosofia política, 2007.
ANÔNIMO. A Epopeia de Gilgamesh. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 14. Ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2005.
SAMOS DE, Epicuro. Carta sobre a felicidade. Torino: Opere, 1973.

6 comentários:

  1. Olá Arthur D´Elia dos Santos, em primeiro lugar gostaria de parabenizá-lo pelo texto. Contudo, no meu entender, há duas questões abertas em sua reflexão. Quando é tratada a epopeia de Gilgamesh você apenas a descreve sem relacioná-la à um saber (ou saberes) e isto indicaria uma ausência na relação entre as narrativas-míticas e a filosofia. Ou seja, uma reflexão sobre a vida e a morte que estaria presente em cada vez que as estórias de Gilgamesh foram repassadas. Além desta problemática, a sua compreensão da epopeia, ao que parece, só adquire um sentido quando "traduzida" pelas filosofias de Epicuro e de Heidegger, o que poderia sugerir uma hierarquia dos saberes, sendo a literatura menor que a filosofia, e a impossibilidade de um saber antes de Epicuro e Heidegger. Diante dessas questões, gostaria de te perguntar: a "tradução" dos saberes mesopotâmicos por meio de Epicuro e Heidegger não levaria a continuidade de interpretações que acreditam existir uma inferioridade dos saberes "orientais" pelos "ocidentais"?
    Álvaro Ribeiro Regiani

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, boa tarde! Agradeço o elogio. Sobre sua primeira questão: não relacionei e nem procurei definir que tipo de saber é a epopeia, porque o objetivo foi explicar todo o percurso de acontecimentos de maneira que fosse possível sentir realmente a história, fazer parte dela. E a relacionei com duas vertentes filosóficas que tem alguma semelhança com a epopeia mesmo tendo vindo a serem escritas anos depois.

      Sobre a segunda questão, não há uma hierarquia. E justamente por eu reconhecer a epopeia como um saber é que me preocupei em descrever o seu trajeto. Epicuro e Heidegger dizem coisas semelhantes à uma produção muito anterior. Talvez o título dê essa impressão, visto que Heidegger veio depois. Mas o teor do título não é ser anacrônico ou apenas ler a epopeia a partir de um viés filosofico, subordinando assim a produção literária. Mas sim demonstrar como o que Heidegger pensou ou até mesmo Epicuro, de certa forma, já foi pensado anos antes. Claro que sobre uma questão específica e, mesmo assim, com semelhanças, não cópia.

      Sobre a pergunta, como falei antes, não foi uma tradução por meio desses autores, mas uma relação com pontos de convergência. De maneira nenhuma existe hierarquia entre a produção do Ocidente para com do Oriente. Muito pelo contrário, a partir do meu texto procuro criar um diálogo com essas tradições .
      Abraço,
      Arthur D'Elia.

      Excluir
  2. Boa noite! Ótimo texto, muito bem estruturado! Gostaria de saber se o processo que ocorreu com Gilgamesh após a morte de Enkidu pode ser considerado como uma mudança causada pelo processo de luto, uma vez que mudou a visão do rei a respeito da vida e da morte e criou nele receio pela perda da vida.

    Ana Paula Sanvido Lara

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Boa noite! Agradeço o elogio. Podemos dizer que tem a ver com o luto. Mas o motivo principal é o medo da morte. A questão da finitude.
      Abraço,
      Arthur D'Elia.

      Excluir
  3. Olá Arthur. Que interessante a construção da narrativa e as relações que fizeste. Parabéns pelo trabalho e pela análise. Achei muito relevante trazer a ideia de angústia que permeia a existência.
    Não sei se é possível: mas durante as aventuras que Enkidu e Gilgamesh realizam, há a ideia de mitsein? Ou, também é possível refletir através da perspectiva do cuidado que um herói tem pelo o outro?
    Muito obrigada,
    Paola Rezende Schettert

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Boa noite! Obrigado pelo elogio. Eu não acho que se aplica porque no texto rejeito a ontologia Heideggeriana como ponto para tratamento de questões do homem.
      Abraço.

      Excluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.