GILGAMESH FOI ASSOMBRADO PELA FILOSOFIA
DECADENTE DE HEIDEGGER
Arthur D’Elia
Gilgamesh, famoso personagem de uma epopeia escrita na antiga mesopotâmia, passou por diversas aventuras ao longo de sua vida. O mesmo viveu intensamente até a morte de seu amigo Enkidu. Posterior a isso, carregou o fardo da finitude de tal modo que o viver se esvaziou de sentido. Os dois momentos descritos podem ser explicados a partir de Epicuro e Heidegger.
Gilgamesh foi rei de Uruk. Sua constituição caracterizava-se por ser dois terços deus e um terço humano. Possuía extrema sabedoria e força. Entretanto, após haver reclamações do povo de Uruk com relação à sua arrogância sem limites, os deuses conversaram com a deusa da criação Aruru, a qual cria Enkidu que possuía virtudes de um deus da guerra para confrontar o rei. O ser criado pela deusa vivia inicialmente na floresta com animais, protegendo-os das armadilhas de um caçador. Este último reclama junto ao pai da criatura sobre o que tem acontecido. Diante disto, recebe um conselho de ir até Gilgamesh em busca de uma rameira para se deitar com o sabotador de armadilhas. Ela o enfraquece quando passam juntos por sete dias e sete noites. Enkidu passa a ter redução de suas virtudes como agilidade, rapidez, força e os animais fugiam dele. Isso ocorre, pois, agora detinha conhecimento de tal forma que pensamentos ocupavam o coração (2011).
Por conseguinte, a rameira o chama para ir até o templo de Ishtar e Anu; que prontamente aceita visando derrotar o rei de Uruk. Na noite em que Gilgamesh casaria, Enkidu surge e ambos brigam. O enviado da deusa Aruru perde, mas reconhece a força de seu oponente e ambos se tornam amigos. O primeiro momento de companheirismo desta nova amizade reside no fato de que após ter um sonho de seu destino decretado por Enlil, pais dos deuses; o rei de Uruk recebe o auxílio de seu amigo que lhe pede para não temer a vida por esta ser finita, e que deve governar para cumprir seu destino. Ser a luz e trevas da humanidade tal como lhe foi concedido por Enlil, sem abusar do poder (2011).
Com relação ao destino, fazia parte deste a colocação do nome sob lápides que estavam localizadas na terra dos vivos e cedros. Para tanto, a ida até o local onde eram abatidos os cedros se fazia necessário. Todavia, uma criatura conhecida como “Humbaba", protegia os cedros, possuía um caráter hediondo aterrorizador. Com relação a tal perigo, Enkidu alerta seu amigo. Diante desta situação, Gilgamesh se posiciona de uma maneira um tanto quanto epicurista ao considerar que não se deve temer a morte e que mesmo que morra, vai morrer de um jeito que seu nome ficaria marcado para sempre na história da humanidade por tamanha coragem ao lutar com Humbaba. O desejo do rei de Uruk era de inscrever seu nome onde nenhum homem jamais conseguiu (2011).
O que pode ser dito como epicurismo nesta consideração, fica claro com a seguinte fala de Epicuro:
“Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade (EPICURO, 1973, p. 2).”
O refletir sobre a morte simplesmente não faz sentido, pois enquanto o humano está vivo, o que se tem é vida e quando a morte chega, ele já não está mais presente. Como bem ressalta o grego, o bem e mal são aspectos da vida, sensações e não da morte. Neste primeiro momento, o rei de Uruk segue esta linha de pensamento.
Quando os dois personagens estão a caminho da floresta (povo e conselheiros de Uruk não acreditavam na vitória dos dois amigos), percebem que um portão que os separa dela precisa ser aberto; este trabalho fica para Enkidu que o executa perfeitamente. No entanto, ao abri-lo, fica fraco, com medo de novas batalhas. Mas Gilgamesh pede-lhe para continuar firme e não temer a morte. Os dois juntos conseguem derrotar Humbaba, que era sentinela da floresta, após um triste episódio em que a criatura derrotada inicialmente havia sido consolada pelo rei de Uruk por não saber quem eram seus pais. Porém, o retorno à Uruk seria impossível caso a ajuda fosse efetuada (2011).
Após o êxito de Gilgamesh, Ishtar que era deusa do amor, sexo, o convida para ser seu marido. Mas este prontamente recusa ao se recordar do modo como ela tratava seus últimos amantes. A deusa não fica satisfeita, chora e pede ao seu pai Anu um touro do céu para destruir o rei de Uruk. Caso não lhe fosse concedido, abriria os portões do inferno trazendo mortos de volta à vida. Anu atende ao pedido, fornece-lhe o touro, este devora trezentos homens, próximo a um rio, quase se alimenta também de Enkidu; mas o potente rei de Uruk age rapidamente e o mata com sua espada (2011).
Na noite seguinte, Enkidu sonha que os deuses (Anu, Ea, Enlil e Shamash) se reuniram num conselho. Em tal reunião, Anu alega a Enlil que devido às mortes de Humbaba e touro do céu, causadas pelos dois amigos, um dos dois deveria morrer. Ainda que o deus-sol Shamash tenha discordado da conduta dos deuses, não foi o suficiente para evitar a maldição que estes colocariam sobre Enkidu. O grande amigo de Gilgamesh vem a falecer, tornando o rei de Uruk um poço de raiva. Em respeito ao companheiro morto, decide protagonizar um luto real à esquerda de seu trono; com príncipes da terra beijando seus pés e o povo de Uruk chorando e cantando hinos fúnebres (2011).
A radical perda de sentido com relação à vida atinge o herói após o fim de seu praticamente irmão. A corrida para pôr o nome na lápide se esvazia de significado. Gilgamesh passa a vaguear pela planície, se perguntando como poderia ficar em paz; principalmente ao se dar conta da finitude de sua vida. O medo da morte passa a dominá-lo, pois até o momento este é o seu irremediável destino. Consequentemente, ao modificar seu planejamento e passa a ir atrás de Utnapishtim, que foi acolhido pelos deuses após o dilúvio, ficando instalado na terra de Dilnum, no jardim do sol. Somente ele dentre todos os homens possui a vida eterna concedida pelos deuses. Desta maneira, Gilgamesh almeja a vida eterna por medo da morte (2011).
A percepção da morte como um destino inexorável atinge o rei de Uruk de tal modo que a sua preocupação não é mais com a vida em si e seu sentido, mas com sua inegável mortalidade. Se antes considerava que só uma vida provida de sentido acarreta numa morte provida de sentido; após o triste fim de seu amigo, passa a ver a vida tendo um propósito apenas se esta for infindável. O peso do viver mediante finitude, ainda que de um modo distinto, está presente na filosofia heideggeriana.
Diante disto, Heidegger considera que a morte é parte do estar no mundo, é a possibilidade mais própria e certa. Ela é algo iminente, fenômeno da vida (Heidegger, 2005). Ao tomar consciência da mortalidade, o homem experimenta a angústia; que por sua vez caracteriza-se por manifestar a condição pela qual as coisas podem ter sentido (AFONSO, 2007). Nesta experiência, ao assumir o nada da angústia, o homem ou “dasein”, é capaz de tornar sua existência autêntica, tornar-se livre. Deve-se entender por “nada” o seguinte: possibilidade de revelação do ente para o dasein humano. Já o ente, dentre o que se pode dizer a seu respeito, corresponde ao modo como o dasein é no mundo (HEIDEGGER, 2005).
Importante notar a partir do exposto que a negatividade é condição para a positividade. A angústia é condição para a liberdade, a consciência da morte é condição para um viver provido de sentido. A decadência de tal filosofia, assim como a de Gilgamesh depois do falecimento de seu amigo, se expressa ao considerar a morte como parte constitutiva do viver. Essa perspectiva, além de constituir um obstáculo à fruição da vida, é completamente desprovida de um senso de realidade. Porque enquanto se está vivo, a morte não existe e, quando esta chega, o homem não está mais presente. Até então, foi demonstrado todo o percurso de Gilgamesh e como seu objetivo se modifica após a morte de Enkidu com os devidos auxílios de Epicuro e Heidegger para entender a modificação de percepção com relação à morte. No entanto, cabe a pergunta: que fim teve o rei de Uruk?
Na busca por Utnapishtim, um homem escorpião ajuda o herói abrindo as portas da montanha, apesar de o fabricante de vinhos Siduri, ter tentado fechá-la. Antes que fosse fechada, Gilgamesh o impede e explicita toda sua trajetória com suas vitórias. Deparando-se com isto, Siduri não entende o motivo de o rei de Uruk carregar consigo uma aparência de derrotado, abatido; e pede-lhe que aproveite a vida, curta momentos de carinho com sua esposa por estas coisas serem partes constitutivas da vida humana (2011). Todavia, o herói não o escutou e seguiu seu caminho em direção a um oceano para encontrar um barqueiro chamado Urshanabi.
Posteriormente, este o leva até seu pretendido destino. Ao encontrar com o único dentre os homens que possui vida eterna, Gilgamesh mesmo sem tornar possível a Utnapishtim como alguém com suas qualidades e modo de viver realiza incessante busca pela imortalidade, fornece-lhe uma resposta. Trata-se de uma flor que cresce sob as águas e possui espinhos que rejuvenesce. O rei de Uruk mediante muito esforço consegue tê-la, mas seu destino sempre foi uma existência finita junto ao povo de Uruk. Ao entrar num poço de água fresca para se banhar, uma serpente que vivia nas profundezas surge e consome a flor, findando a chance de Gilgamesh tornar-se imortal. A partir de então, já estando fraco, o herói falece tragicamente (2011). Desta maneira, a cereja do bolo da decadência é explicitada. Considerando o rumo que Gilgamesh tomou após o fim de Enkidu, pode-se concluir que o rei de Uruk foi assombrado pela decadente e esdrúxula filosofia heideggeriana ao preocupar-se com uma reflexão sobre a morte de tal modo que esta passa a ser parte de seu estar no mundo em sua visão.
Deve-se ressaltar que em Heidegger a vida na sua positividade ganharia tal status ao negar a negatividade que é a finitude para voltar-se ao existir que é constitutivo do dasein, do ser humano. Posto isto, a diferença para o herói da epopéia está no fim niilista e totalmente imerso no aspecto negativo que este teve. Entretanto, o que os iguala enquanto excreções é a tomada da morte como parte constitutiva do viver. A carência de um estudo da realidade em si os faz ignorar aquilo que Epicuro já alertava: a morte não significa nada, pois ao estar vivo, a morte é ausente (EPICURO, 1973). A morte só pode ser considerada como parte do estar no mundo se tal pensamento que assim a concebe igualar o que aparece a um sujeito da realidade em si. Desta maneira que se poderia conceber a morte como sendo integrante do homem e possibilidade mais própria e certa.
Portanto, para além das picuinhas fenomenológicas ou niilistas ao extremo, deve-se destinar atenção para as considerações epicuristas de que enquanto se vive a morte não se faz presente, pois quando esta última chega o ser humano não está mais aí. A possibilidade mais certa e própria é o deleite humano e não o seu fim, isto porque a vida em si não contém o seu findar. Gilgamesh antes da morte de Enkidu estava no caminho certo para um viver autêntico, mas foi assombrado pela filosofia decadente de Heidegger.
Referências
Arthur D´Elia dos Santos
Universidade do Estado do Rio de Janeiro: Graduando de filosofia
Bolsista: CNPq. Orientador: Edgar Marques
AFONSO, Paulo. Nada, Angústia e Morte em Ser e Tempo, de Martin Heidegger. Juíz de Fora: Revista ética e filosofia política, 2007.
ANÔNIMO. A Epopeia de Gilgamesh. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 14. Ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2005.
SAMOS DE, Epicuro. Carta sobre a felicidade. Torino: Opere, 1973.
Arthur D’Elia
Gilgamesh, famoso personagem de uma epopeia escrita na antiga mesopotâmia, passou por diversas aventuras ao longo de sua vida. O mesmo viveu intensamente até a morte de seu amigo Enkidu. Posterior a isso, carregou o fardo da finitude de tal modo que o viver se esvaziou de sentido. Os dois momentos descritos podem ser explicados a partir de Epicuro e Heidegger.
Gilgamesh foi rei de Uruk. Sua constituição caracterizava-se por ser dois terços deus e um terço humano. Possuía extrema sabedoria e força. Entretanto, após haver reclamações do povo de Uruk com relação à sua arrogância sem limites, os deuses conversaram com a deusa da criação Aruru, a qual cria Enkidu que possuía virtudes de um deus da guerra para confrontar o rei. O ser criado pela deusa vivia inicialmente na floresta com animais, protegendo-os das armadilhas de um caçador. Este último reclama junto ao pai da criatura sobre o que tem acontecido. Diante disto, recebe um conselho de ir até Gilgamesh em busca de uma rameira para se deitar com o sabotador de armadilhas. Ela o enfraquece quando passam juntos por sete dias e sete noites. Enkidu passa a ter redução de suas virtudes como agilidade, rapidez, força e os animais fugiam dele. Isso ocorre, pois, agora detinha conhecimento de tal forma que pensamentos ocupavam o coração (2011).
Por conseguinte, a rameira o chama para ir até o templo de Ishtar e Anu; que prontamente aceita visando derrotar o rei de Uruk. Na noite em que Gilgamesh casaria, Enkidu surge e ambos brigam. O enviado da deusa Aruru perde, mas reconhece a força de seu oponente e ambos se tornam amigos. O primeiro momento de companheirismo desta nova amizade reside no fato de que após ter um sonho de seu destino decretado por Enlil, pais dos deuses; o rei de Uruk recebe o auxílio de seu amigo que lhe pede para não temer a vida por esta ser finita, e que deve governar para cumprir seu destino. Ser a luz e trevas da humanidade tal como lhe foi concedido por Enlil, sem abusar do poder (2011).
Com relação ao destino, fazia parte deste a colocação do nome sob lápides que estavam localizadas na terra dos vivos e cedros. Para tanto, a ida até o local onde eram abatidos os cedros se fazia necessário. Todavia, uma criatura conhecida como “Humbaba", protegia os cedros, possuía um caráter hediondo aterrorizador. Com relação a tal perigo, Enkidu alerta seu amigo. Diante desta situação, Gilgamesh se posiciona de uma maneira um tanto quanto epicurista ao considerar que não se deve temer a morte e que mesmo que morra, vai morrer de um jeito que seu nome ficaria marcado para sempre na história da humanidade por tamanha coragem ao lutar com Humbaba. O desejo do rei de Uruk era de inscrever seu nome onde nenhum homem jamais conseguiu (2011).
O que pode ser dito como epicurismo nesta consideração, fica claro com a seguinte fala de Epicuro:
“Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade (EPICURO, 1973, p. 2).”
O refletir sobre a morte simplesmente não faz sentido, pois enquanto o humano está vivo, o que se tem é vida e quando a morte chega, ele já não está mais presente. Como bem ressalta o grego, o bem e mal são aspectos da vida, sensações e não da morte. Neste primeiro momento, o rei de Uruk segue esta linha de pensamento.
Quando os dois personagens estão a caminho da floresta (povo e conselheiros de Uruk não acreditavam na vitória dos dois amigos), percebem que um portão que os separa dela precisa ser aberto; este trabalho fica para Enkidu que o executa perfeitamente. No entanto, ao abri-lo, fica fraco, com medo de novas batalhas. Mas Gilgamesh pede-lhe para continuar firme e não temer a morte. Os dois juntos conseguem derrotar Humbaba, que era sentinela da floresta, após um triste episódio em que a criatura derrotada inicialmente havia sido consolada pelo rei de Uruk por não saber quem eram seus pais. Porém, o retorno à Uruk seria impossível caso a ajuda fosse efetuada (2011).
Após o êxito de Gilgamesh, Ishtar que era deusa do amor, sexo, o convida para ser seu marido. Mas este prontamente recusa ao se recordar do modo como ela tratava seus últimos amantes. A deusa não fica satisfeita, chora e pede ao seu pai Anu um touro do céu para destruir o rei de Uruk. Caso não lhe fosse concedido, abriria os portões do inferno trazendo mortos de volta à vida. Anu atende ao pedido, fornece-lhe o touro, este devora trezentos homens, próximo a um rio, quase se alimenta também de Enkidu; mas o potente rei de Uruk age rapidamente e o mata com sua espada (2011).
Na noite seguinte, Enkidu sonha que os deuses (Anu, Ea, Enlil e Shamash) se reuniram num conselho. Em tal reunião, Anu alega a Enlil que devido às mortes de Humbaba e touro do céu, causadas pelos dois amigos, um dos dois deveria morrer. Ainda que o deus-sol Shamash tenha discordado da conduta dos deuses, não foi o suficiente para evitar a maldição que estes colocariam sobre Enkidu. O grande amigo de Gilgamesh vem a falecer, tornando o rei de Uruk um poço de raiva. Em respeito ao companheiro morto, decide protagonizar um luto real à esquerda de seu trono; com príncipes da terra beijando seus pés e o povo de Uruk chorando e cantando hinos fúnebres (2011).
A radical perda de sentido com relação à vida atinge o herói após o fim de seu praticamente irmão. A corrida para pôr o nome na lápide se esvazia de significado. Gilgamesh passa a vaguear pela planície, se perguntando como poderia ficar em paz; principalmente ao se dar conta da finitude de sua vida. O medo da morte passa a dominá-lo, pois até o momento este é o seu irremediável destino. Consequentemente, ao modificar seu planejamento e passa a ir atrás de Utnapishtim, que foi acolhido pelos deuses após o dilúvio, ficando instalado na terra de Dilnum, no jardim do sol. Somente ele dentre todos os homens possui a vida eterna concedida pelos deuses. Desta maneira, Gilgamesh almeja a vida eterna por medo da morte (2011).
A percepção da morte como um destino inexorável atinge o rei de Uruk de tal modo que a sua preocupação não é mais com a vida em si e seu sentido, mas com sua inegável mortalidade. Se antes considerava que só uma vida provida de sentido acarreta numa morte provida de sentido; após o triste fim de seu amigo, passa a ver a vida tendo um propósito apenas se esta for infindável. O peso do viver mediante finitude, ainda que de um modo distinto, está presente na filosofia heideggeriana.
Diante disto, Heidegger considera que a morte é parte do estar no mundo, é a possibilidade mais própria e certa. Ela é algo iminente, fenômeno da vida (Heidegger, 2005). Ao tomar consciência da mortalidade, o homem experimenta a angústia; que por sua vez caracteriza-se por manifestar a condição pela qual as coisas podem ter sentido (AFONSO, 2007). Nesta experiência, ao assumir o nada da angústia, o homem ou “dasein”, é capaz de tornar sua existência autêntica, tornar-se livre. Deve-se entender por “nada” o seguinte: possibilidade de revelação do ente para o dasein humano. Já o ente, dentre o que se pode dizer a seu respeito, corresponde ao modo como o dasein é no mundo (HEIDEGGER, 2005).
Importante notar a partir do exposto que a negatividade é condição para a positividade. A angústia é condição para a liberdade, a consciência da morte é condição para um viver provido de sentido. A decadência de tal filosofia, assim como a de Gilgamesh depois do falecimento de seu amigo, se expressa ao considerar a morte como parte constitutiva do viver. Essa perspectiva, além de constituir um obstáculo à fruição da vida, é completamente desprovida de um senso de realidade. Porque enquanto se está vivo, a morte não existe e, quando esta chega, o homem não está mais presente. Até então, foi demonstrado todo o percurso de Gilgamesh e como seu objetivo se modifica após a morte de Enkidu com os devidos auxílios de Epicuro e Heidegger para entender a modificação de percepção com relação à morte. No entanto, cabe a pergunta: que fim teve o rei de Uruk?
Na busca por Utnapishtim, um homem escorpião ajuda o herói abrindo as portas da montanha, apesar de o fabricante de vinhos Siduri, ter tentado fechá-la. Antes que fosse fechada, Gilgamesh o impede e explicita toda sua trajetória com suas vitórias. Deparando-se com isto, Siduri não entende o motivo de o rei de Uruk carregar consigo uma aparência de derrotado, abatido; e pede-lhe que aproveite a vida, curta momentos de carinho com sua esposa por estas coisas serem partes constitutivas da vida humana (2011). Todavia, o herói não o escutou e seguiu seu caminho em direção a um oceano para encontrar um barqueiro chamado Urshanabi.
Posteriormente, este o leva até seu pretendido destino. Ao encontrar com o único dentre os homens que possui vida eterna, Gilgamesh mesmo sem tornar possível a Utnapishtim como alguém com suas qualidades e modo de viver realiza incessante busca pela imortalidade, fornece-lhe uma resposta. Trata-se de uma flor que cresce sob as águas e possui espinhos que rejuvenesce. O rei de Uruk mediante muito esforço consegue tê-la, mas seu destino sempre foi uma existência finita junto ao povo de Uruk. Ao entrar num poço de água fresca para se banhar, uma serpente que vivia nas profundezas surge e consome a flor, findando a chance de Gilgamesh tornar-se imortal. A partir de então, já estando fraco, o herói falece tragicamente (2011). Desta maneira, a cereja do bolo da decadência é explicitada. Considerando o rumo que Gilgamesh tomou após o fim de Enkidu, pode-se concluir que o rei de Uruk foi assombrado pela decadente e esdrúxula filosofia heideggeriana ao preocupar-se com uma reflexão sobre a morte de tal modo que esta passa a ser parte de seu estar no mundo em sua visão.
Deve-se ressaltar que em Heidegger a vida na sua positividade ganharia tal status ao negar a negatividade que é a finitude para voltar-se ao existir que é constitutivo do dasein, do ser humano. Posto isto, a diferença para o herói da epopéia está no fim niilista e totalmente imerso no aspecto negativo que este teve. Entretanto, o que os iguala enquanto excreções é a tomada da morte como parte constitutiva do viver. A carência de um estudo da realidade em si os faz ignorar aquilo que Epicuro já alertava: a morte não significa nada, pois ao estar vivo, a morte é ausente (EPICURO, 1973). A morte só pode ser considerada como parte do estar no mundo se tal pensamento que assim a concebe igualar o que aparece a um sujeito da realidade em si. Desta maneira que se poderia conceber a morte como sendo integrante do homem e possibilidade mais própria e certa.
Portanto, para além das picuinhas fenomenológicas ou niilistas ao extremo, deve-se destinar atenção para as considerações epicuristas de que enquanto se vive a morte não se faz presente, pois quando esta última chega o ser humano não está mais aí. A possibilidade mais certa e própria é o deleite humano e não o seu fim, isto porque a vida em si não contém o seu findar. Gilgamesh antes da morte de Enkidu estava no caminho certo para um viver autêntico, mas foi assombrado pela filosofia decadente de Heidegger.
Referências
Arthur D´Elia dos Santos
Universidade do Estado do Rio de Janeiro: Graduando de filosofia
Bolsista: CNPq. Orientador: Edgar Marques
AFONSO, Paulo. Nada, Angústia e Morte em Ser e Tempo, de Martin Heidegger. Juíz de Fora: Revista ética e filosofia política, 2007.
ANÔNIMO. A Epopeia de Gilgamesh. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 14. Ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2005.
SAMOS DE, Epicuro. Carta sobre a felicidade. Torino: Opere, 1973.
Olá Arthur D´Elia dos Santos, em primeiro lugar gostaria de parabenizá-lo pelo texto. Contudo, no meu entender, há duas questões abertas em sua reflexão. Quando é tratada a epopeia de Gilgamesh você apenas a descreve sem relacioná-la à um saber (ou saberes) e isto indicaria uma ausência na relação entre as narrativas-míticas e a filosofia. Ou seja, uma reflexão sobre a vida e a morte que estaria presente em cada vez que as estórias de Gilgamesh foram repassadas. Além desta problemática, a sua compreensão da epopeia, ao que parece, só adquire um sentido quando "traduzida" pelas filosofias de Epicuro e de Heidegger, o que poderia sugerir uma hierarquia dos saberes, sendo a literatura menor que a filosofia, e a impossibilidade de um saber antes de Epicuro e Heidegger. Diante dessas questões, gostaria de te perguntar: a "tradução" dos saberes mesopotâmicos por meio de Epicuro e Heidegger não levaria a continuidade de interpretações que acreditam existir uma inferioridade dos saberes "orientais" pelos "ocidentais"?
ResponderExcluirÁlvaro Ribeiro Regiani
Olá, boa tarde! Agradeço o elogio. Sobre sua primeira questão: não relacionei e nem procurei definir que tipo de saber é a epopeia, porque o objetivo foi explicar todo o percurso de acontecimentos de maneira que fosse possível sentir realmente a história, fazer parte dela. E a relacionei com duas vertentes filosóficas que tem alguma semelhança com a epopeia mesmo tendo vindo a serem escritas anos depois.
ExcluirSobre a segunda questão, não há uma hierarquia. E justamente por eu reconhecer a epopeia como um saber é que me preocupei em descrever o seu trajeto. Epicuro e Heidegger dizem coisas semelhantes à uma produção muito anterior. Talvez o título dê essa impressão, visto que Heidegger veio depois. Mas o teor do título não é ser anacrônico ou apenas ler a epopeia a partir de um viés filosofico, subordinando assim a produção literária. Mas sim demonstrar como o que Heidegger pensou ou até mesmo Epicuro, de certa forma, já foi pensado anos antes. Claro que sobre uma questão específica e, mesmo assim, com semelhanças, não cópia.
Sobre a pergunta, como falei antes, não foi uma tradução por meio desses autores, mas uma relação com pontos de convergência. De maneira nenhuma existe hierarquia entre a produção do Ocidente para com do Oriente. Muito pelo contrário, a partir do meu texto procuro criar um diálogo com essas tradições .
Abraço,
Arthur D'Elia.
Boa noite! Ótimo texto, muito bem estruturado! Gostaria de saber se o processo que ocorreu com Gilgamesh após a morte de Enkidu pode ser considerado como uma mudança causada pelo processo de luto, uma vez que mudou a visão do rei a respeito da vida e da morte e criou nele receio pela perda da vida.
ResponderExcluirAna Paula Sanvido Lara
Boa noite! Agradeço o elogio. Podemos dizer que tem a ver com o luto. Mas o motivo principal é o medo da morte. A questão da finitude.
ExcluirAbraço,
Arthur D'Elia.
Olá Arthur. Que interessante a construção da narrativa e as relações que fizeste. Parabéns pelo trabalho e pela análise. Achei muito relevante trazer a ideia de angústia que permeia a existência.
ResponderExcluirNão sei se é possível: mas durante as aventuras que Enkidu e Gilgamesh realizam, há a ideia de mitsein? Ou, também é possível refletir através da perspectiva do cuidado que um herói tem pelo o outro?
Muito obrigada,
Paola Rezende Schettert
Boa noite! Obrigado pelo elogio. Eu não acho que se aplica porque no texto rejeito a ontologia Heideggeriana como ponto para tratamento de questões do homem.
ExcluirAbraço.