Juliana Rodrigues


DIREITO NA MESOPOTÂMIA
Juliana Mendes Rodrigues

É comum aos juristas recorrerem ao Direito Romano, ao estudar a origem de algum instituto jurídico, como ponto de partida. Porém, e, antes do Direito Romano, não havia ordenamento jurídico? Não havia leis?
Dentre as primeiras civilizações, a Mesopotâmia destacou-se como a primeira a criar as primeiras leis escritas. Na Antiguidade, a região conhecida como Mesopotâmia reunia diversas culturas, ressaltando-se a suméria, a babilônica e a assíria. “Dez ou quinze reis seguem a Hammurabi”, conforme destaca Emanel Bouzon (Bouzon, 2003, p. 19).
O Código de Hammu-rabi ou Hamurabi ganhou notoriedade no tema da legislação da Mesopotâmia, sendo por muitos anos considerado como “o mais velho do mundo antes de se descobrirem os seus precursores sumerianos” (Kramer, 1969, p. 52). Emanuel Bouzon ensina que antes do código desenvolvido pelo fundador da terceira dinastia de Ur, no terceiro milênio da era cristã, embora não fossem leis ou normais legais, as inscrições de Urukagina (Lagãs) “apresentam as medidas sociais adotadas para coibir os abusos e corrigir as injustiças vigentes” (Bouzon, 2003, p. 22).
Segundo os ensinamentos de Samuel Noah Kramer, o código elaborado por Ur-Nammu (2111-2094 a.C.)  teria precedido o Código de Hammurabi “por mais de três séculos”:
“O mais antigo código que se conhece, o protótipo de todos que vieram depois – sumerianos, babilônicos e assírios” – é o de Ur-Nammu, que reinou sobre a cidade sumeriana de Ur por volta de 2100 a.C. Entretanto, mais preservado e mais amplo é o código baixado por Hamurábi, de Babilônia. Embora tenha surgido três séculos após o de Ur-Nammu, suas quase 300 leis, redigidas tersamente, oferecem de maneira indireta um retrato revelador da antiga sociedade mesopotâmica e espelham um estilo de vida que sofreu poucas modificações de caráter substancial no curso de dois ou três milênios.” (Kramer, 1969, p. 82)
O sistema de escrita desenvolvido pelos mesopotâmios foi de grande importância para que o Código de Hamurabi tenha sido tão disseminado. A escrita das leis garantia a aplicação da legislação elaborada pelo rei a um número maior de pessoas e por mais tempo. Dois mil e oitocentas linhas escritas, em língua acádica, usando o sistema cuneiforme, ou seja, “era o resultado da incisão de um estilete na argila mole” (Pozzer), o conjunto das leis está gravado em uma “pesada estela de 2,25 metros de altura” (Bottéro, 2011, p. 77).
À luz do que se entende hoje como Direito, é possível dizer que o Código de Hamurabi configurou “uma compilação de Direito Público e Privado, compreendendo matéria processual, penal, administrativa, civil e comercial” (Lobo, 2006, p. 147-148).
Nas palavras de Jean Bottéro, o Código representaria um conjunto de sentenças,
“dadas pelo rei ou por um de seus representantes para resolver um problema particular de comportamento público, mas que foram despojadas de todas as notas individualizantes para conservar apenas o essencial de sua significação: de um lado, um problema de conduta, do outro, sua solução” (Bottéro, 2011, p. 77).
No mesmo sentido, Jaime Pinsky afirma que Hammurabi não criou leis novas, mas sim codificou práticas sociais comuns, inclusive intervendo “de uma forma enérgica na economia, estabelecendo regras de trabalho, valores para aluguéis arrendamento de terras animais, salários e normas de comércio” (Pinsky, 1987, p. 65). Marcelo Rede aponta que além dos códigos e leis, a vontade real era emitida por meio de decretos reais, que significavam “uma efetiva intervenção normativa do monarca” (Rede, 2009, p. 137).
Especificamente sobre à repressão aos crimes cometidos, vigorava o chamado “princípio ou lei de Talião”, ou seja, a punição era dada na mesma medida que a gravidade e crueldade que determinado era cometido. Partindo da ideia “olho por olho, dente por dente”, o código de Hamurabi permitia à vítima ou à sua família, a vingança:
“Código de Hamurabi. 1. Se alguém enganar a outrem, difamando esta pessoa, e este outrem não puder provar, então que aquele que enganou deve ser condenado à morte.”
Ressalta-se as linhas de Emanel Bouzon,
“Encontra-se, aqui, pela primeira vez, a aplicação de um princípio desconhecido nas legislações anteriores: o ‘ius talionis’, o célebre ‘olho por olho, dente por dente’. Sua introdução na legislação de Hammurabi deve-se, sem dúvida, à influência dos grupos nômades que participaram da formação da dinastia de Hammurabi.” (Bouzon, 2003, p. 30).
Antes do surgimento da lei de talião, predominava a vingança de sangue, que causava a dizimação de tribos. Para o jurista brasileiro Cezar Bitencourt, o novo posicionamento representaria um “exemplo de tratamento igualitário entre infrator e vítima” (Bitencourt, 2013, p. 73), já que estabelecia uma proporcionalidade ao mal praticado.
A severidade da punição era percebível também nos crimes cometidos contra o patrimônio, “O furto e o roubo eram punidos com uma severidade a toda prova, porque entendiam que o ataque à propriedade ofendia mais aos Deuses do que ao homem e qualquer destes crimes revelava evidente impiedade” (Lobo, 2006, p. 159-160):
“Código de Hamurabi. 21. Se alguém arrombar uma casa, ele deverá ser condenado à morte na frente do local do arrombamento e ser enterrado. 
22. Se estiver cometendo um roubo e for pego em flagrante, então ele deverá ser condenado à morte.”
A título exemplificativo, traz-se ao debate o uso de ordálio, como obtenção de prova da prática de um crime. O ordálio consiste num ritual, em que o suposto acusado se submete à força divina ou, em outras palavras, representa a obtenção de um resultado, por uma manifestação divina. À época, eram fortes aos laços entre Direito e as divindades, já que o “Direito era considerado como expressão da vontade divina” (Nader, 2009, p. 33).
“Código de Hammurabi. 2. Se alguém fizer uma acusação a outrém, e o acusado for ao rio e pular neste rio, se ele afundar, seu acusador deverá tomar posse da casa do culpado, e se ele escapar sem ferimentos, o acusado não será culpado, e então aquele que fez a acusação deverá ser condenado à morte, enquanto que aquele que pulou no rio deve tomar posse da casa que pertencia a seu acusador.”
Considerando a crença mesopotâmia de que os rios eram “divindades capazes de expiar e julgar os pecados dos homens” (Pozzer, p. 10). Ao ser mergulhada no rio, se o acusado morresse afogado, teria recebido o castigo merecido.
Não distante das práticas feudais, estudadas por Michel Foucault, em sua obra “Vigiar e punir”:
“A tortura é um jogo judiciário estrito. E a esse título, mais longe do que às técnicas da Inquisição, ela se liga às antigas provas que se utilizavam nos processos acusatórios: ordálias, duelos judiciais, julgamentos divinos.” (Foucault, 1999, pg. 59).
Desta forma, por meio deste trabalho, ao apresentar considerações quanto ao Direito praticado na Mesopotâmia, buscou-se correlacionar antigos “institutos jurídicos” a princípios que se repetem na Ciência Jurídica. Principalmente, demonstrando do ponto de vista histórico, que o denominado Código de Hammurabi não foi a primeira produção jurídica da humanidade.
Referências
Juliana Mendes Rodrigues. Graduanda de História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Especialista em Ciências Criminais e Segurança Pública pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogada.
BELTRÃO, Claudia e DAVIDSON, Jorge. História Antiga, v. 1. Rio de Janeiro: Fundação CECIERJ, 2009.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 19. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013.
BOUZON, Emanuel. O Código de Hammurabi: introdução, tradução do texto cuneiforme e comentários. 10ª edição. Petrópolis: Editora Vozes Ltda, 2003.
BOTTÉRO, Jean. No começo eram os deuses. Tradução de Marcelo Jacques de Morais. Civilização Brasileira, 2011.
CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Antiguidade oriental: política e religião. São Paulo: Contexto, 1990.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 20ª edição. Petrópolis: Editora Vozes Ltda, 1999.
KRAMER, Samuel Noah. Mesopotâmia: o berço da civilização. Tradução de Genolino Amado. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1969.
LOBO, Abelardo Saraiva da Cunha. Curso de Direito Romano: história, sujeito e objeto do direito: instituições jurídicas. Prefácio do professor Dr. Francisco de Paula Lacerda de Almeida. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2006.
NADER, Paulo. Introdução do Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
PINSKY, Jaime. As primeiras civilizações. São Paulo: Atual, 1987.
POZZER, Katia Maria Paim. “O exercício do Direito na Mesopotâmia Antiga”. Disponível em:
https://www.tjrs.jus.br/export/poder_judiciario/historia/memorial_do_poder_judiciario/memorial_judiciario_gaucho/revista_justica_e_historia/issn_1676-5834/v2n3/doc/02-Katia_Pozzer.pdf. Acesso em 11/06/2019.
REDE, Marcelo. “O ‘Rei de Justiça’: Soberania e Ordenamento na Antiga Mesopotâmia”. In. Phoînix, Rio de Janeiro, 15-1: 135-146, 2009. Disponível em:
http://phoinix.historia.ufrj.br/media/uploads/artigos/8_-_O_Rei_de_justica_soberania_e_ordenamento_na_antiga_Mesopotamia_-_M_PhcWJEA.pdf. Acesso em: 11/06/2019.


15 comentários:

  1. Como você analisa a questão do código de Ur-Nammu não ser referido nos estudos históricos como a primeira referencia na área de código.?
    Rogério Silva de Mesquita

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  2. Parabéns pelo texto! Tomando como perspectiva os sistemas legais que temos hoje, o código de Hamurabi e seus predecessores está mais para romano-germânico, consuetudinário ou commom law?

    Paulo Roberto Camargos.

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    1. Boa noite, Paulo Camargos. Agradeço pelo interesse na leitura do meu texto.
      É difícil enquadrar o Código de Hammurabi e seus predecessores, em um dos sistema legal que você apontou.
      No sistema romano-germânico, uma das características principais é sua codificação. Dessa forma, sendo recorrente remessa à Lei das Doze Tábuas e aos glosadores. O Código de Hammurabi é importante por sua forma escrita, inclusive.
      O sistema consuetudinário é aquele que as regras e normas não são descritas conforme um processo legislativo regular. Os mesopotâmios não teriam conhecido processo legislativo, votação e aprovação de lei, por exemplo.
      Ainda que o sistema da commom law se paute em um instrumento escrito, a aplicação das leis, costuma ser pautada, em decisões judiciais anteriores.
      Repito aqui a informação extraída do livro de Jaime Pinsky, de que o Código teria codificado práticas sociais comuns.
      Juliana Mendes Rodrigues

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  3. Boa tarde!
    Juliana Rodrigues,
    Primeiramente, parabéns pela temática abordada, bem como a fundamentação consistente. Você menciona que,do ponto de vista histórico o Código de Hammurabi não foi a primeira produção jurídica da humanidade.
    Poderia relatar sobre outros precedentes que convalida essa afirmação?
    Att.,
    Maykon Albuquerque Lacerda

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    1. Boa noite, Maykon Lacerda. Agradeço pelo interesse na leitura do meu texto.
      Conforme abordei no texto, o "código" de Ur-Nammu teria precedido a compilação feita por Hammurabi por, mais de 03 séculos, conforme informações extraídas das referências bibliográficas citadas.
      Sem esgotar o tema, meu intuito foi apresentar breves considerações apontando que o Código de Hammurabi não é o primeiro registro de legislação conhecida.
      Juliana Mendes Rodrigues

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  4. Boa tarde. Gostaria de saber qual código é o mais antigo o de Ur-nammu ou o de Urukagina? Esse último é considerado um código?
    Stéphanie Aragão da Rocha

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    1. Boa noite, Stéphanie Rocha. Agradeço pelo interesse na leitura do meu texto.
      Conforme abordei no texto, tendo por base os ensinamentos de Emanel Bouzon, as inscrições de Urukagina seria mais antigas. E não podem ser consideradas como um "código", já que mais se pareciam com medidas sociais.
      Juliana Mendes Rodrigues

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  5. A escrita cuneiforme criada na mesopotâmia era difícil de ser aprendida, e seu uso permaneceu restrito aos escribas. Você apresenta em seu texto que o sistema de escrita desenvolvido pelos mesopotâmios foi fundamental para que o código de Hamurabi tenha sido disseminado. De que forma ocorreu essa disseminação entre a população, já que a escrita estava restrita aos escribas?

    Janete Soares da Costa

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  6. Bom dia! Como não foi o primeiro a ser instituído, que influências o Código de Hamurabi sofreu do Código de Ur-Nammu? É possível traçar um paralelo?

    Eduardo Sodré Farias

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  7. Olá Juliana! Inicialmente parabéns pelo seu texto. Na oportunidade gostaria de te perguntar o que, na sua opinião, como advogada e graduanda em História, faz do código de Hamurábi um diferencial no mundo antigo do ponto de vista jurídico e histórico?

    Jefferson Fernandes de Aquino

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    1. Boa noite, Jefferson Fernandes. Agradeço pelo interesse na leitura do meu texto.
      Na minha opinião, do ponto de vista jurídico, o Código de Hammurabi guarda grande destaque por ser o primeiro a ser escrito. Conforme conceitos atuais, é muito importante que as leis sejam conhecidas, que devem cumpri-las. Assim como, a forma escrita garante segurança quanto à aplicação e observância das leis.
      No tocante ao ponto de vista histórico, considerando a diversidade de civilizações que prestavam obediência ao Código de Hammurabi e com base nos autores que consultei, acredito que o Código figurava como um ponto necessário à "unificação". No momento que todos seguem um Código preditado, todos se submetem aos poderes de Hammurabi.
      Juliana Mendes Rodrigues

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  8. Olá, bom dia Juliana!
    Primeiramente parabéns pela reflexão e temática.
    Gostaria de saber se esta passagem não seria um anacronismo, À luz do que se entende hoje como Direito, é possível dizer que o Código de Hamurabi configurou “uma compilação de Direito Público e Privado, visto que a autora atribui ideias que não são de época?

    Seygon da Silva Santos

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    1. Boa noite, Seygon Santos. Agradeço pelo interesse na leitura do meu texto.
      A passagem que você citou foi empregada com o intuito de facilitar a compreensão do leitor. Justamente, por ser conceitos utilizados atualmente, é um recurso para que o leitor vislumbre, de forma mais consubstanciada, as matérias tratadas no Código de Hammurabi.
      Juliana Mendes Rodrigues

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  9. Bom dia, Juliana, muito interessante as suas colocações.
    Minhas dúvidas:
    O Código de Hamurabi enquanto codificação escrita de leis baseadas em costumes sociais já estabelecidos pode ser entendido também como um roteiro/modelo de julgamentos para os crimes cotidianos, de modo que ao estabelecer uma dada punição para determinada ação criminosa, estabelece um princípio de igualdade jurídica entre o povo? Havia nesse sentido, restrições/mudanças em relação as punições dependendo da classe social do acusador e/ou do acusado?
    Agradeço a atenção
    Sandiara Daíse Rosanelli

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  10. Boa noite, Juliana!
    Parabéns pela abordagem da temática, muito interessante!
    Eu gostaria de saber se existem indícios históricos referentes ao cumprimento das penas, isto é, se há registros que comprovam que os códigos realmente eram postos em prática e, se sim, com que frequência?
    Obrigado desde já.

    Bruno Ian Lupi Jorge

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