João Inácio


CATOLICISMO ORIENTAL, DO MONOFISISMO AO CISMA DE 1054: BREVES APONTAMENTOS HISTÓRICO-TEOLÓGICOS
João Inácio Bezerra da Silva

Introdução
Denomina-se Igreja Oriental, uma das três maiores forças da cristandade ao lado do cristianismo romano e do protestantismo. Trata-se de um ramo do cristianismo que apresentou divergências do Ocidente, especificamente da influência do Império Romano, embora, ao longo de sua história, tenha sofrido uma série de pressões sociais, políticas e religiosas, dentre as quais conseguiu não apenas sobreviver, como também, de alguma forma, florescer.
A Igreja Ocidental, sediada em Roma, e a Igreja Oriental, sediada em Constantinopla, passaram por um processo de crescente afastamento entre os séculos V e XI, não obstante, com tentativas frustradas de reconciliações. Para que se ocorra uma ruptura final, apenas um pretexto seria necessário, no qual, por meio de uma discussão sobre a Terceira pessoa da Santíssima Trindade, O Espírito Santo, o Papa Leão IX, excomungou o patriarca Miguel Cerulário em 1054. Desde então a cristandade se divide em duas Igrejas: A católica apostólica romana, ocidental e a católica ortodoxa grega, oriental.
Os orientais buscarão suas bases teológicas na filosofia helênica, especialmente no platonismo e no estoicismo, enquanto os ocidentais estarão fundamentados na filosofia aristotélica e na legislação romana. A partir deste enfraquecimento estrutural, outras fragmentações ocorreram, como a Igreja Jacobita na Síria, e os Coptas na Abissínia.
As principais diferenças rituais entre as Igrejas do Ocidente e Oriente são marcantes: O casamento dos padres era aceito no Oriente e recusado no Ocidente. Para os orientas, somente os bispos deveriam permanecer celibatários, os orientais, ainda, ministravam as missas em língua nacional, especialmente, grego, eslavo e hebraico, diferente dos Ocidentais, que celebrava obrigatoriamente em latim. Os orientais recusavam o uso de imagens esculpidas e de crucifíxos, mas apenas de imagens pintadas, conhecidas como ícones. Diferentemente da Igreja Ocidental, que centrou seu patriarcado em Roma, dando origem ao papado e a toda hierarquia que o acompanha, a Igreja Oriental foi, desde suas bases, tendente ao ecumenismo, considerando-se seus diferentes patriarcados. Assim, o patriarcado de Constantinopla, o mais antigo, mas a partir da conquista turca, em 1453, entrou em declínio. O patriarcado de Alexandria, compreendendo o Egito e suas dependências, já foi o principal centro cristão do Oriente, mas depois da conquista maometana entrou em declínio. O patriarcado de Jerusalém, criado em 451, com jurisdição sobre a Palestina, permanece até hoje. O patriarcado da Rússia, porém, é o mais forte centro da comunidade cristã ortodoxa em todo o mundo, mesmo após o esfacelamento da União Soviética.
Desse modo, a igreja ortodoxa chega ao século XXI contando com treze patriarcados independentes, com suas respectivas particularidades, mas concordando no que há de fundamental em suas crenças. Considerando a relevância e importância da Igreja Oriental buscaremos efetuar uma breve revisão de alguns fatos e disputas que produziram a separação entre estas duas importantes partes da cristandade, a ocidental e a oriental.
Do Monofisismo ao Monotelismo
O período patrístico, na perspectiva da Igreja ortodoxa, compreende os séculos I a VI, coincidindo com a história da Igreja Ocidental, visto que até este momento não havia divisão, desta forma, havia uma teologia única, segundo Sartórius (1982, p. 17), “os padres latinos Tertuliano, Cipriano, Ambrósio, Hilário e Agostinho, associados aos padres gregos Orígenes, Clemente, Basílio, Gregório Naziazeno, João Crisóstomo e Gregório Nissa, são responsáveis pela construção desse rico e belo patrimônio teológico”.
Durante essa primeira fase histórica da caminhada da igreja, as principais características da reflexão teológica são as mesmas tanto no Oriente, quanto no Ocidente. A teologia assume um caráter eminentemente pastoral, visto que os sacerdotes estão voltados para a alimentação espiritual do rebanho, e proteção contra as heresias.
Desde o século V, diversas disputas ocorreram na busca por uma formulação que unificassem os aspectos divino e humano de Cristo. O concílio de calcedônia, realizado em 451, tinha como principal objetivo afirmar a doutrina da Igreja em oposição ao monofisismo ensinado por Eutiques. A decisão de calcedônia se mostra para a história da Igreja como mais importante até mesmo que as decisões do Concílio de Niceia. Tillich (2007, p. 101) afirma que “entendia-se, então, que o Filho do Homem viera do céu, e, por outro lado, que o filho do Deus foram crucificado e sepultado”, esta formulação se mostra mais próxima da teologia de Antioquia do que de Alexandria, e por isto mesmo mais próxima das formulações latinas e portanto, Ocidentais. Com a decisão de calcedônia houve um claro desapontamento dos bispos Alexandrinos que se recusaram assinar a declaração final, Tillich (2007, p. 102) nos conta que “a formulação de Calcedônia foi negada em parte, e em parte deixada de lado. De 482 a 519, ocorreu o primeiro cisma entre o Oriente e o Ocidente”, consequentemente, as decisões do concílio foram mantidas pelo Ocidente, porém o Oriente as rejeitou ou buscou seguir formulações monofisistas.
Depois de Calcedônia o monofisismo se espalhou por diversas regiões do império romano, alcançando até a Pérsia, surgindo desta forma a Igreja Cismática Persa. Segundo nos mostra Bettenson (2011, p. 156) “os monofisistas continuaram fortes na Síria e no Egito”, O Imperador de Constantinopla, Zenon I, na tentativa de por fim a complicada situação publicou o edito conhecido como “Henotikon” em 482, onde conclui da seguinte forma:
“Anatemizamos todo aquele que confessou ou confessa qualquer outra opinião, quer agora, quer em outro tempo, quer em calcedônia ou em outro sínodo qualquer; em particular anametizamos Nestório, Eutiques e todos os que sustentam os seus ensinamentos. Portanto uni-vos à Igreja, vossa mãe espiritual, e nela gozai a mesma comunhão conosco de acordo com a referida e única definição de fé, a dos 318 santos padres [...]” (BETTENSON Apud EVAGRIUS, H.E. III. 14, 2011, p. 156)
Zenon I, embora bem-intencionado, pois procurava encerrar o Cisma e rejeitar as doutrinas monofisitas ensinadas por Eutiques, termina por ser mal compreendido, por dar a entender que haveriam erros nas formulações de Calcedônia, priorizando a decisão dos 318 padres do concílio de Nicéia, em detrimento de Calcedônia.
Com “Henotikon”, o Imperador Zenon I, conseguiu conquistar  a parte Egípcia da Igreja, e o posterior Imperador Anastácio (491-518) “defendeu pessoalmente de maneira tão explícitas as tendências monofisistas que o credo de Calcedônia praticamente estava desativado do Império do Oriente” (KAUFMANN et al (Orgs.), 2012, p. 143).
Entretanto esse cisma se manteria apenas até 553, no Segundo Concílio de Constantinopla, este concílio foi motivado pela controvérsia dos três capítulos. Bettenson (2011, p. 159) nos conta que as obras dos teólogos “Teodoro de Mopsuéstia, Teodoreto de Ciro e Ibas de Edessa, tinham sido resumidas como os ‘três capítulos’ e aprovados em Calcedônia”, com a chegada de Justiniano ao trono imperial em 527, e sua busca por conquistar apoio dos monofisitas, condenou os “três capítulos”, o que provocou dificuldades, após diversos protestos um Concílio ecumênico foi convocado em 553. De acordo com Kaufmann et al (Orgs.) (2012, p. 145) “Justiniano conseguiu, junto à maioria dos bispos provenientes do Oriente, impor a condenação dos três capítulos da suspeita fórmula ‘uma natureza do Logos encarando’”. O Papa Virgílio, após oscilações, consentiu com a decisão. Assim, o Oriente e o Ocidente foram reconciliados, mas as tensões não foram dissipadas, pois, não apenas algumas igrejas do Oriente se mantiveram separadas, como numerosas Igrejas do Ocidente romperam com a Sé Apostólica.
Por fim, no século VII há a última fase das disputas entre o Ocidente e Oriente antes do Grande Cisma, A disputas Monotelista. O cisma na cristandade não se caracterizava apenas como uma separação de dois polos religiosos, mas devido a ameaça Árabe e Persa, tornou-se uma questão política. Desta forma, Bettenson (2011, p. 161) nos conta que “Ciro, o patriarca de Alexandria, encorajado pelo imperador Heráclio, sugeriu ao Papa Honório que os cismáticos poderiam ser reconciliados por uma fórmula (proposta por Sérgio de Constantinopla) que admitia as duas naturezas, mais uma só [...] vontade divino-humana”. Desta forma a controvérsia não mais se tratava das naturezas e da hipóstase de Cristo, e sim em torno de sua vontade e de sua eficiência. Segundo Kaufmann et al (Orgs.) 2012, p. 146) esta controvérsia no fundo se tratava novamente da “questão monofisista, pois reais questões de controvérsia não eram se a vontade e a ação em Cristo eram uma só [...]. A questão era se a vontade característica essencial da essência divina e da humana poderia ser uma só”, para a ortodoxia seria necessário afirmar que o único Cristo, agiu com as duas vontades em comunhão e unidade plena de objetivo. O Papa Honório concordou com a fórmula monotelista, a qual foi publicada pelo Imperador Honório em 638. A disputa monotelista chegou ao fim no terceiro Concílio (in trullo) de Constantinopla, com a imposição do Papa da época, Agatho, da forma Ortodoxa da relação de comunhão das duas vontades em Cristo.
O Cisma de 1054
As disputas sobre a natureza e vontade de Cristo vão apontar diferenças na forma de compreender a fé a as elaborações teológicas, que se acentuaram produzindo estruturas religiosas que já não se assemelhavam. Entre os séculos VIII e IX uma nova crise surgirá entre a Igreja do Oriente e do Ocidente, a controvérsia iconoclasta.
De acordo com Bettenson (2011, p. 162) “a controvérsia começou com o edito iconoclástico de Leão III, em 726. Entre os motivos estava o desejo de purificar o aviltado cristianismo da maior parte do Oriente”, é possível compreender que a proibição não tinha um objetivo puramente religioso, mas se tratava de uma reação étnica contra os novos povos que estariam investindo contra o império, entre eles “eslavos, búlgaros, sarracenos, etc. [que] tinham desmoralizado a população e quase destruído toda instrução” (BETTERSON, 2011, p. 162). Em 754 ocorre o Sínodo iconoclasta de Constantinopla que declara anátema o uso de imagens esculpidas no culto, e no segundo Sínodo iconoclasta de Constantinopla em 815 há o repúdio ao culto de imagens. Eliade (2011, p. 66) explica que o argumento trazia de volta a cristologia já debatida anteriormente inúmeras vezes,  “pois é impossível pintar a figura de Cristo sem subtender que se representa a natureza divina (o que é uma blasfêmia) ou sem separar as duas naturezas inseparáveis a fim de pintar somente a natureza humana (o que é uma heresia)”.
Tendo em vista que nas Igrejas do Oriente havia rejeição para o culto de imagens esculpidas, permitindo-se apenas ícones pintados, enquanto que no Ocidente o culto de esculturas era livre, as deliberações dos sínodos iconoclastas geraram uma nova ruptura do Oriente com o Ocidente em 815. Entretanto, os aspectos políticos ficam sobremaneira evidentes, pois de acordo com Bettenson (2011, p. 162) “essa ruptura, deixando o papa sem proteção entre os lombardos, foi uma das causas da fundação do império Franco. Embora Carlos Magno tivesse tomado o partido dos iconoclastas e repudiado o Segundo Concílio de Nicéia”.
A ruptura provocada pela controvérsia iconoclasta apenas foi parcialmente resolvida com um novo Cisma entre Ocidente e Oriente. Inácio, Patriarca de Constantinopla foi deposto pela corte e substituído por Fócio. O Papa Nicolau I exigiu reparação pois o direito de depor o Patriarca não seria da corte, mas da Igreja, após diversas negociação, Fócio desafiou o Papa e em 867, no quarto Concílio de Constantinopla, acusou que a Igreja de Roma era herética, condenando sua interferência no Oriente e por fim, excomungando o Papa Nicolau I, esta querela perdurou até 920.
Nesta altura já havia tamanha animosidade entre os dois polos da Igreja, que qualquer deslize poderia provocar o estopim para um Cisma definitivo. E realmente foi o que aconteceu. Após as reformas monásticas e o final do Império Carolíngio, A Igreja do Ocidente iniciou uma busca por reformas mais profunda, o Papa Leão IX, embora em um pontificado breve, assumiu para si essa responsabilidade reformista. De acordo com Kaufmann (2012, p. 233):
“O Papa Leão IX, em seu breve pontificado, desenvolveu atividades bastante diversificadas. Em Roma permaneceu apenas por poucos meses. Com sua presença pessoal em diversas localidades da Europa Latina, Leão IX, transmitiu a clérigos e leigos a impressão do significado da primado do papa: intervenção direta em todos os problemas da Igreja. Em suas viagens tentava atrair o maior número possível de fiéis para os objetivos da reforma, consagrando igrejas e canonizando santos”.
Apesar desta notável figura, em Constantinopla, o Patriarca Miguel Cerulário, também de poderosa personalidade esteve envolvido em diversas tensões com a Igreja Ocidental. Em 1051 mandou fechar as Igrejas Latinas em sua jurisdição, temendo uma aliança entre o imperador e o Papa. Nesta altura pequenos pretextos serviram de motivações para acirrar os ânimos, como o uso de pães na missa, que no Ocidente eram fermentados, e no Oriente, sem levedo, e a questão do Celibato dos Clérigos. Por fim, o acréscimo do “Filioque” ao Credo, segundo o qual o Espirito Santo não procede apenas do pai, mas também do Filho.
Diante desta situação em 1054, a despeito dos esforços mediadores do imperador, os representantes da Igreja Romana em Constantinopla excomungaram o Patriarca e Celurário, de forma semelhante anatematizou a Igreja do Ocidente. O cisma era total e definitivo, e perdura até nossos dias.
Considerações
As diferenças na forma de compreensão da realidade existente nas concepções Ocidentais e Orientais podem ser visualizadas nas controvérsias e disputas que culminaram com o Cisma da Igreja em 1054. Desta forma esta pesquisa, que tem um caráter introdutório, busca proporcionar uma abertura para o diálogo com o Oriente, partindo da compreensão desta cadeia de eventos.
Deste a divisão das corretes teológicas de Antioquia e de Alexandria, e posteriormente da teologia Latina e Grega, podemos perceber como os diferentes locais culturais e influências históricas produzem diferentes perspectivas, mesmo ao observar um objeto semelhante, como foi apontado na presente pesquisa em relação a natureza de Cristo.
O Oriente e o Ocidente, podem ser teologicamente compreendidos como os dois lados de uma mesma moeda. O valor de um lado está no outro, pois não há valor em uma moeda de um lado só, por sua vez os aspectos culturais e políticos, nos trazem a noção de que a falta de diálogo e de compreensão das diferenças provocou uma divisão que já perdura por mais de 1000 anos.
Referência
João Inácio Bezerra da Silva é Bacharel em teologia pelo Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil, com convalidação pela Faculdade Diocesana em Mossoró e Licenciando em História pela Universidade Católica de Pernambuco.
BETTENSON, Henry. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo: ASTE, 2011.
ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas: de Maomé à Idade das Reformas. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, v. 3.
KAUFMANN, Thomas et al (Orgs.). História ecumênica da Igreja: dos primórdios até a Idade Média. São Paulo: Edições Loyola: Paulus; São Leopoldo, RS: Editora Sinodal, 2012, v. 1.
SARTÓRIUS, Bernard. Igreja Ortodoxa. São Paulo: Editorial Verbo, 1982.
TILLICH, Paul. História do pensamento cristão. 4 ed. São Paulo: ASTE, 2007.

2 comentários:

  1. CARO INÁCIO muito bom seu trabalho com relação ao cisma do oriente e do ocidente e se percebe desde o século IV divergências de interpretações sobre a natureza de Jesus. Jesus histórico é um tema que tenho pesquisado e que tenho me entusiasmado por esta pesquisa. Assim no inicio do cristianismo primitivo a cultura Helênica criou uma nova característica de ver a imagem de Cristo. Desse modo a minha questão se essa cultura Helênica desde o século II Influenciou na religiosidade e na maneira de representação e de como criou uma forma de natureza de Jesus no oriente? e que essa tendência da religião ortodoxa ainda é reflexo dessa forma de reconhecer Jesus no contexto da religiosidade empreendida pela cultura helênica?
    ELOIS ALEXANDRE DE PAULA

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    1. Olá Elois Alexandre de Paula. A cultura helênica teve grande influência na construção da teologia sobre a natureza de Jesus, e consequentemente, a religiosidade.
      No século II a teologia Alexandrina, isto é, oriental e grega utilizou conceitos platônicos como base, utilizando a interpretação alegórica das Escrituras, rejeitando assim as interpretações mais literais.
      Além das questões interpretativas o debate em relação a natureza de Jesus debatiam pela teologia grega uma natureza divina que não se misturava com a Humana, trazendo a tona as concepções de Platão do corpo enquanto prisão da alma, assim a natureza divina de Jesus tinha apenas aparência de humana.
      Esta dicotomia corpo e alma ultrapassa o tempo e chega até nossos dias sob as mais diversas formas.

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