A HISTÓRIA DA SUMÉRIA
Marcus Ximenes Viana Cabral
A Suméria é a primeira experiência de civilização
que se tem conhecimento na região da Mesopotâmia. Localizada na Baixa
Mesopotâmia, a região abrigou condições ambientais favoráveis para uma produção
de excedentes alimentícios capaz de permitir a divisão e a especialização do
trabalho. As cidades sumérias se desenvolvem a partir do templo, com toda a
dinâmica de suas atividades culturais e administrativas em sua órbita, com a
centralização e organização da distribuição das atividades da cidade e do
campo. A produção de excedentes do segundo garante a existência e a manutenção
das atividades do primeiro.
Cabe destacar que a história da Suméria, bem como
de todas as civilizações da Mesopotâmia, é uma história em construção. Os
sítios arqueológicos sofrem com saques, destruições e interrupções das
escavações desde o esfacelamento do estado Iraquiano resultante das guerras das
décadas de 1990 e 2000 e da guerra civil em curso até os dias atuais. Centenas
de hectares ainda inexplorados aguardam condições favoráveis para que novas
expedições arqueológicas possam ser formadas. Muito do material retirado das
escavações e enviados aos centros de pesquisa em outras partes do mundo ainda
não foram traduzidas às percepções contemporâneas acerca da cultura suméria,
assim como das outras culturas que se estabeleceram na região.
Os primeiros espaços dedicados exclusivamente ao
culto dos deuses e às explicações míticas sobre a criação e a existência humana
na região são encontrados em Eridu, com as construções sobrepostas durante
diversas fases do período Calcolítico. Da fase Eredu (aproximadamente 5800
a.C), passando pelos períodos Ubaid (5000-4000 a.C) e Uruk (4000-3200). Região
próxima aos pântanos, é da manipulação da terra com a água que o homem da
região constrói as primeiras edificações em adobe, a maior parte utensílios e
ferramentas utilizados nas atividades do cotidiano e no registro das mesmas. E
é também da lama que surgem os deuses Apsu (abzu em sumério) e Tiamat, que dão
origem aos outros deuses e por fim, à humanidade. Mitologias de culturas
posteriores da Mesopotâmia apontam para a região de Eridu como o local da
origem da criação dos deuses ou da humanidade. Com o tempo, Eridu ganha
torna-se uma cidade quase que exclusiva ao culto aos deuses.
Além de Eridu, ainda nos períodos Ubaid e Uruk,
outras aglomerações se desenvolvem em torno de templos. Não há vestígios sobre
a origem dos sumérios e a sua ligação com os primeiros povoamentos em Eridu e
dos demais centros surgidos durante os períodos da cultura Ubaid e Uruk. É
durante o período Primeiro Dinástico (3200- 2300 a.C) que os Sumérios (e sua
cultura) tiveram protagonismo na região.
Observa-se por toda a Mesopotâmia a existência de cidades-templos:
Eridu, Uruk e Ur, Lagash e Umma, Adab, Shurupak, Nippur, Kish, Eshnunna, Assur
e Mari. Cada cidade-templo tem ao menos um Deus, por exemplo, Inanna em Uruk,
Enlil em Nippur, Enki em Eridu. Isso não significa que os deuses predominantes
numa cidade também não fossem cultuados em outra cidade e que não dispusesse de
templo para tal.
É em Uruk (ou Uruque) que se desenvolve a maior
concentração urbana da Suméria e chega a abranger uma área de cerca de 550
hectares durante o terceiro milênio antes de Cristo, no período Primeiro
Dinástico. Shurupak (ou Churupaque), bem menor, chega a abranger uma área de
100 hectares e uma população estimada entre 15000 a 30000 habitantes, no fim do
Primeiro Dinástico III (2600-2350), época em que um grande incêndio pois fim a
cidade.
O fato de Uruk abrigar a maior área de concentração
urbana leva alguns autores a afirmar que seria lá a capital da Suméria. Pode
até ser que, em certo momento, Uruk tenha tido certo destaque e predomínio sobre
outras cidades da região. Em um período de quase um milênio, inúmeras
possibilidades de relações de força entre as cidades-estados são possíveis. A
partir dos registros administrativos encontrados em Shurupak descobriu-se uma
rede de cooperação econômica cultural e militar formada por essas duas cidades
entre si, acrescida das cidades de Adab, Lagache, Nippur e Umma. A essa rede de cidades interligadas Gwendolyn
Leick nomeia a “Hexápolis Suméria”.
Além de ser o espaço de culto aos deuses, e a
reprodução da cultura religiosa e moral, o templo concentra, num primeiro
período, a administração dos recursos necessários para a execução de as obras
públicas, como a construção de canais de irrigação, estradas, fortificações.
Para tal, fez-se necessário o dispêndio de muitas horas de trabalho humano,
desde a aquisição de matéria prima, passando pelo transporte, execução
propriamente dita. A multifuncionalidade do templo é refletida na sua estrutura
arquitetônica em que espaços são destinados às atividades de culto aos deuses e
outras destinadas para a realização de atividades econômicas, como armazéns,
arquivos e oficinas. Com o surgimento do palácio, há uma divisão de funções. O
templo continua responsável pelo primado ideológico, enquanto a primazia
operacional passa a ser do palácio. Apesar de distintos, o primeiro torna-se
uma célula do segundo na nova estrutura da cidade-estado. Se antes, no templo,
os sacerdotes estavam a serviço dos deuses, no palácio, o poder do rei passa a
ser justificado pela vontade dos deuses. No templo, os Deuses são o destaque,
os sacerdotes, mesmo que importantes, estão no segundo plano. Já no Palácio, o
centro é o Rei. Listas como a “lista dos reis sumérios” trazem as dinastias que
se estabeleceram nas cidades durante o período e os domínios que algumas
conseguem estabelecer sobre as outras.
Essas duas unidades centrais da cidade (e suas
atividades) demandavam uma dedicação cada vez maior de tempo por parte de quem
as praticavam. Chegando à dedicação exclusiva, o que leva a uma especialização
trabalho. A especialização das atividades leva ao surgimento das mais diversas
profissões. Lavrador, horticultor, pastor, cozinheiro, ferreiro, carpinteiro,
metalúrgico, tecelão, curtidor, tecedor de canas, oleiro, pedreiro, ensebador
de gado, barqueiro, moleiro, perfumista, cervejeiro, fabricante de azeite,
ourives, plateiro, agrimensor, escriba, passarinheiro, juiz e médico são
profissões existentes no vocabulário sumério que, associadas a outras
evidências, ajudam a revelar características das atividades econômicas
presentes e parte da tecnologia desenvolvida. A divisão do trabalho também se
dava, por exemplo, em relação ao gênero e a idade. Atividades têxtis geralmente
ficam a cargo de mulheres e crianças. Faz-se necessário o controle da produção
e distribuição de insumos para garantir o abastecimento de mantimentos para a
mão de obra alocada nos mais diversos postos de trabalho, seja ele assalariado
ou por corveia. A obtenção de recursos se dá pelo controle da produção ou mesmo
por tributos. Surgem os escribas e os administradores dos templos. Novos
espaços ligados (pertencentes ou não) ao palácio e aos templos (que continuam
com funções de produção) são criados para atender as novas demandas
provenientes do desenvolvimento das atividades. Cresce a cidade, crescem os
templos e o palácios. Esse crescimento leva a uma a maior concentração de
recursos excedentes tornando o centro urbano num espaço cobiçado por outros
povos e cidades. É preciso proteger a cidade, o templo e o palácio. A
construção de muros e a especialização da atividade de guarda da cidade
refletem as novas necessidades.
A partir das supracitadas divisão e especialização
do trabalho, a fragmentação do conhecimento conduz à um aperfeiçoamento das
atividades, agora exclusivas pelos seus agentes. Isso resulta numa natural
evolução nas técnicas empregadas para as mais diversas atividades, transmitidas
entre as gerações. Evolução e desenvolvimento das ciências permitem condições
técnicas capazes de proporcionar a construção de templos e palácios maiores,
sistema de canalização mais sofisticados, de rodízio de terras mais eficientes
para uma maior produtividade da agricultura e pastoreio, controle de
produtividade das plantações com a seleção de sementes e o surgimento de novas
ferramentas e armas, bem como aperfeiçoamento das já existentes.
A administração de recursos para uma rede crescente
de abastecimento e distribuição requer padronização quantitativa dos mesmos. As
padronizações passam a ser estabelecidas desde a produção em larga escala de
bens e utensílios de uso comum à transformação de matéria prima para as obras.
Das trocas e distribuições de excedentes surgem as primeiras tabelas de
equivalência comercial entre os produtos. Alguns produtos como a prata
(raramente o cobre) e a cevada são escolhidos como referência base para a
conversão aos demais produtos no mercado de trocas.
E é nesse novo cenário de especialização e evolução
das atividades que se desenvolvem as formas de registro das atividades e
ideias. É com o desenvolvimento da escrita que a cultura suméria atravessa os
séculos e se comunica com as civilizações contemporâneas. Centenas de
plaquetas, tabuletas sinetes cilíndricos e selos em bom estado de conservação,
como na incendiada Shurupak permitiram a decodificação da escrita e o seu
desenvolvimento desde a fase pictográfica, à fase logográfica e depois à
logográfica e silábica mista cuneiforme. A partir da leitura documentos
encontrados nas edificações, foi possível verificar as profissões existentes,
as contabilidades e outros documentos produzido pela administração dos templos
e dos palácios, o que era produzido, as trocas comerciais, os ritos e oferenda
aos deuses, bem como a origem dos mesmos.
Para a administração contábil, os sumérios adotam
um sistema numérico sexagesimal, onde o inteiro é subdivido por sessenta. A
divisão por múltiplos de 60 pode ter facilitado a distribuição de recursos e
impostos a partir de divisões do tempo pelo ciclo solar, o ano dividido em 12
meses de 30 dias, totalizando 360. Desenvolve-se, assim, todo um sistema
matemático que foi adotado por muito tempo por diversos povos até a preferência
ampla pelo sistema decimal. Todavia, esse sistema ainda é usado nos para
divisão e contagem do tempo em segundos, minutos, horas, dias.
De certa forma, a cultura suméria esteve presente
em diversas civilizações posteriores. Pode-se observar que muito do que foi
desenvolvido (ou já se tinha conhecimento) por essa civilização é encontrado no
nosso cotidiano mesmo depois do seu declínio e desaparecimento. Por exemplo,
podemos citar o domínio de cadeias produtivas de gêneros alimentícios como o
pão e a cerveja que atravessaram milênios, por culturas distintas até chegar à
nossa mesa; técnicas de irrigação parecidas com as desenvolvidas pelos sumérios
são usadas ainda hoje em determinadas regiões; a divisão do tempo através de
ciclos observados na movimentação dos astros. Ou mesmo conceitos éticos e mitos
religiosos presentes na história da suméria que podem se relacionar diretamente
com conceitos e mitos trazidos por culturas que a sucederam.
Referências
Marcus Ximenes Viana Cabral cursa História na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
AYMARD, André. História geral das civilizações.
Volume I. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993.
LEICK, Gwendolyn. Mesopotâmia: a invenção da
cidade. São Paulo: Imago, 2003.
LIVERANI, Mario. Antigo Oriente. São Paulo: Edusp,
2016.
PINSKY, Jaime. As primeiras civilizações. São
Paulo: Atual, 1987.
Olá Marcus Ximenes, parabéns pelo texto!
ResponderExcluirO conjunto das cidades sumerianas eram separadas e isoladas por áreas pantanosas e desérticas e este isolamento propiciou o desenvolvimento de características peculiares e identidades próprias diferentes. Contrariando estas diferenças, é possível afirmar que a religião foi um dos mais importantes elementos comuns entre os povos sumerianos e consequentemente para seu desenvolvimento?
Clésio Fernandes de Morais
Olá, Clésio! Que bom que tenha gostado do texto.
ExcluirAcredito sim que a religião seja um fator de destaque que ajuda a construir a identidade das culturas. Não é diferente com a Suméria. A existência do cultos (templos) a determinadas divindades em mais de uma cidades reforçam a tese desse intercâmbio cultural entre elas.
O possível isolamento geográfico da região é contestado pelas fontes que consultei na construção desse texto. Os autores adotam um posicionamento de hegemonia da cultura e não de exclusividade. Hipóteses de fluxos migratórios (forçados ou espontâneos) devem ser consideradas nas estimativas de crescimento demográfico no período.
Boa noite!
ResponderExcluirSeu texto ficou incrível, pois aborda aspectos fundamentais para a formação da civilização suméria.
Em relação as disputas entre as cidades-estados sumerianas, quais fatores você acha que contribuíram para
que elas se mantivessem independentes umas das outras?
José Raimundo Neto.
Olá, José! Obrigado pelas considerações acerca do texto!
ExcluirComo disse no texto, ao tratar a Héxapolis (Liga para outros autores) Suméria, várias relações entre as cidades podem ocorrer num período tão longo quanto o Primeiro Dinástico. São aproximadamente novecentos anos. A aliança entre as seis cidades da Liga reflete aquele momento em que foram registrados os documentos presevados pelo cozimento das tabuletas encontrados em Shurupak. Assim, acredito que possa sim ter havido momentos de independência, bem como momentos de domínio de uma cidade sobre outras. Algo que as pesquisas dos materiais em seus níveis já permitem afirmar para as civilizações dos períodos posteriores na região.
Boa noite! Ótimo texto. Gostaria de saber como eram elegidos os reis sumérios. Qual a ligação destes com o templo?
ResponderExcluirAna Paula Sanvido Lara
Olá, Ana Paula! Fico feliz que também tenha gostado do texto!
ResponderExcluirAs fontes que pesquisei para a construção do texto não mencionam como os Reis chegaram ao poder. A própria lista dos Reis da Suméria é um documento correspondente a um período posterior a essa civilização. O que leva aos autores a adotarem cautela para fazer qualquer afirmação sobre as Dinastias do período em si. Todavia, a existência dos Palácios e a sua opulência em relação aos próprios templos levam os autores a indicarem uma mudança de eixo de poder no centro das cidades. O Palácio torna-se o centro do poder. O templo conserva as funções relacionadas à moral (primado ideológico) que dá suporte ao poder palaciano. A própria lista dos Reis da Suméria apontam personagens míticos (como Gilgamesh) que fundem as funções de líderes dos dois núcleos de poder.
Caro Marcus, PARABÉNS pelo trabalho!!
ResponderExcluirMe interesso muito por esta parte religiosa, existe algum tipo de material ou possui informações sobre as divindades e fomas de culto? Poderia falar a respeito? ...
Obrigado, Sucesso!!
Jônatas Fernandes Pereira
Oi, Jônatas! Que bom que gostou do texto! Obrigado!
ExcluirDas fontes que eu usei neste trabalho o Leick foi o que eu achei mais rico sobre este aspecto. Ele transcreve alguns trechos de ensinamentos e lendas. O Liverani tem um enfoque maior em questões econômicas e datas.
Um autor que deve ter uma abordagem voltada as divindades e mitos é o Joseph Campbell.
Oi Marcus!
ExcluirObrigado pelas informações e prestatividade! Foi de grande valia!
Sucesso!!
Jônatas Fernandes Pereira
Texto excelente e com informações bastantes enriquecedoras a respeito desses povos. A Mesopotâmia foi o lar de diversas civilizações, ocasionando uma mistura de culturas e costumes que como você enfatizou no seu texto, passou/passa por diversas gerações. Mas, de fato o que ocasionou o desaparecimento dos sumérios? E existem vestígios que comprovam tal acontecimento?
ResponderExcluirTalita Taline da Mata Silva
Oi, Talita! Obrigado!
ResponderExcluirNo caso de Shurupak, as escavações apontam que não houve ocupação da cidade após o incêndio. Pode ter sido um aniquilamento total? Pode! E assim sendo, foi feito por sumérios também ou por outros povos?
Aymard sustenta que o período protodinástico foi o de hegemonia suméria. Que eles poderiam conviver com outras culturas já nessa época e perdido o protagonismo nas culturas posteriores ou até mesmo incorporadas.
Mas nenhuma das fontes é enfática sobre como se deu o desaparecimento dessa cultura.
Olá Marcus, parabéns pelo ótimo texto. Os Sumérios são um povo interessantíssimo e, talvez pela antiguidade, ainda cercados de mistérios e incertezas quanto a vários aspectos de sua cultura. Trazer à tona a maior parte de seu cotidiano e traços culturais talvez seja impossível, até pela distância no tempo em que viveram quanto pela dificuldade em trabalhar naquela região do mundo atualmente, afligida por muitas guerras. Uma pergunta que fica é: o trabalho escravo era bastante difundido entre os sumérios? Se havia escravos, quais eram os critérios para se tornar um?
ResponderExcluirOscar Martins Ribeiro dos Santos